domingo, 24 de febrero de 2008

Depois de Fidel, o quê?

CUBA
Depois de Fidel, o quê?
Afastamento do comandante abrirá, sem dúvidas, debate sobre futuro da revolução. A novidade é que as grandes mudanças no cenário internacional amenizaram a polarização de há alguns anos. E surgiu, alimentada pelo giro à esquerda da América Latina, uma instigante alternativa
Antonio Martins

Consumado o afastamento de Fidel Castro em Cuba, as especulações da mídia voltam-se para a escolha de seu sucessor. Aposta-se, no momento, que a Assembléia Nacional, reunida no próximo domingo, confirmará o "histórico" Raul Castro presidente, mas apontará o "renovador" Carlos Laje como vice. Falta um debate mais profundo. Que significaria, para Cuba, a "renovação"?

Ajudam a sondar o futuro dois textos publicados por Le Monde Diplomatique Brasil em junho do ano passado. Carlos Gabetta, editor do jornal na Argentina, escreve sobre as "promessas e misérias do ’socialismo real’" (do qual Fidel é, certamente, um dos últimos símbolos vivos) e sobre a necessidade de formular um novo projeto emancipatório. O repórter Pablo Stefanoni, descreve Cuba antes da transição — e especula sobre suas perspectivas futuras. As grandes dificuldades que marcaram os anos 90, conta ele, ficaram para trás. Os apagões elétricos são mais raros, a comida é menos exígua. O PIB, que despencou 35% nos quatro primeiros anos após o fim da União Soviética, tem crescido agora a taxas em torno de 7% ao ano. O suprimento de petróleo é assegurado pela Venezuela e a valorização mundial dos produtos primários (como o níquel, que Cuba produz em abundância) elevou as receitas de exportação.

Não é nada que autorize a falar num período de prosperidade ou conforto. A produção industrial é risível; o sistema de planejamento central burocrático inibe iniciativas, o que resulta em quase nenhuma variedade alimentar e em dificuldades constantes de abastecimento de produtos básicos.

Mas a novidade mais original vem agora: o declínio da força ideológica do neoliberalismo também abriu o leque das alternativas políticas para o futuro. Há alguns anos, vislumbravam-se apenas duas opções. Após Fidel, o Partido Comunista tentaria preservar o regime, aceitando o mínimo de mudanças. Já os EUA, aproveitando-se da ausência do líder carismático, tentariam promover a volta ao capitalismo clássico, incentivando revoltas populares desestabilizadoras. Agora, as variáveis são outras.

Embora permaneça, a hipótese de desestabilização vinda de Washington está visivelmente enfraquecida. Iraque e Afeganistão expõem, todos os dias, os limites do poder militar, diplomático e de inteligência dos Estados Unidos. As primárias para as eleições à Presidência revelam o esgotamento, ao menos momentâneo, da postura arrogante e agressiva que marcou o governo Bush. O declínio do dólar e os sinais de fragilidade financeira norte-americana embaçam o brilho das luzes capitalistas que cintilam desde Miami.

Declínio da "opção Miami", que não cintila como antes. O "desenvolvimento" da China seduz setores do PC. Haverá espaço para uma nova democracia, que se insinuou na revolução dos e-mails?
Do ponto de vista do regime, a manutenção do centralismo burocrático está perdendo terreno. Stefanoni aponta elementos muito concretos de construção de uma alternativa "à chinesa". Nesta hipótese, o PC procuraria manter o poder político, mas estimularia o surgimento de um setor capitalista privado, e mesmo a entrada mais intensa de investidores estrangeiros, procurando uma aliança com ambos. Os sinais apontando para isso são: o conhecido aumento da desigualdade (o sistema de duas moedas, que garante enormes privilégios a quem tem acesso a divisas estrangeiras parece eternizar-se; e a emergência de uma elite de administradores com visão empresarial clássica. Muitas vezes ligados às Forças Armadas, eles têm sido crescentemente encarregados encarregados de setores-chaves da economia (turismo, tabaco, açúcar, comércio externo, telecomunicações). Formados muitas vezes em escolas européias, seu modelo de gestão já não é o do velho socialismo (garantia de emprego, salários relativamente nivelados, obediência ao plano estatal), mas a busca de resultados e expansão.

Depois de quarenta anos de revolução, Cuba estaria, então, condenada a escolher entre o capitalismo de mercado e o do partido? Stefanoni acredita que não. Ele enxerga um terceiro elemento: o entusiasmo com os governos de esquerda da América Latina e os primeiros sinais de que a sociedade começa a pensar (e agir) politicamente sem esperar pelo PC.

Exemplo clássico dessa busca de autonomia é a revolução dos emails, que se deu em janeiro de 2007. Diante da aparição prestigiada, na TV oficial, de dirigentes políticos responsáveis pela perseguição aos homossexuais e pela imposição do realismo socialista, no início dos anos 1970, desencadeou-se uma chuva de críticas. Foram iniciadas por intelectuais conhecidos pela defesa da revolução e, rapidamente, tomaram conta da internet. A iniciativa resultou na demissão do secretário-geral da União de Escritores e Artistas (Uneac) e na convocação de um congresso da entidade, que vinha sendo seguidamente adiado.

Ouvida por Stefanoni, a física e escritora cubana Célia Hart — uma espécie de dissidente tolerada — ironiza a possível opção "chinesa": "Os índices de mortalidade infantil em Cuba bloqueada são mais baixos que na China. O modelo chinês baseia-se na super-exploração do trabalho. O grande papel de experiências inovadoras, como a venezuelana ou a boliviana, é mostrar que há outros caminhos, com participação popular", diz ela. Não é, certamente, uma opinião majoritária. Mas as dúvidas sobre o futuro parecem fazer refletir também velhos líderes do regime, como Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular (o raquítico Legislativo cubano). "As reformas que o companheiro Deng Xiaoping fez na China são muito positivas para o povo chinês", disse ele numa entrevista recente ao jornal argentino Clarín. Mas ressalvou: "Elas têm de ser entendidas no contexto da revolução chinesa. Nossas características são diferentes".

extraido de: http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2236

martes, 19 de febrero de 2008

e Fidel renunciou: e a revolução cubana?

Leia a íntegra da carta de renúncia de Fidel Castro
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da Folha Online
O ditador cubano Fidel Castro anunciou sua renúncia ao cargo nesta terça-feira, após 49 anos à frente do poder na ilha.
Leia a íntegra da "Mensagem de um comandante em chefe", a carta de renúncia de Fidel Castro que foi publicada nesta terça-feira no site do "Granma", o jornal oficial do partido comunista de Cuba:
"Queridos compatriotas:
Lhes prometi na última sexta-feira, 15 de fevereiro, que na próxima reflexão abordaria um tema de interesse para muitos compatriotas. A mesma adquire desta vez forma de mensagem.
Chegou o momento de postular e eleger o Conselho de Estado, seu presidente, vice-presidentes e secretário.
Desempenhei o honroso cargo de presidente ao longo de muitos anos. Em 15 de fevereiro de 1976, foi aprovada a Constituição Socialista pelo voto livre, direto e secreto de mais de 95% dos cidadãos com direito a votar. A primeira Assembléia Nacional foi constituída em 2 de dezembro desse ano e elegeu o Conselho de Estado e sua presidência. Antes, eu havia exercido o cargo de primeiro-ministro durante quase 18 anos. Sempre dispus das prerrogativas necessárias para levar adiante a obra revolucionária com o apoio da imensa maioria do povo.
Conhecendo meu estado crítico de saúde, muitos no exterior pensavam que a renúncia provisória ao cargo de presidente do Conselho de Estado em 31 de julho de 2006, que deixei nas mãos do primeiro vice-presidente, Raúl Castro Ruz, era definitiva. O próprio Raúl, que adicionalmente ocupa o cargo de ministro das Forças Armadas por méritos pessoais, e os demais companheiros da direção do Partido e do Estado, foram relutantes ao considerar-me afastado de meus cargos apesar de meu estado precário de saúde.
Era incômoda minha posição frente a um adversário que fez todo o imaginável para se desfazer de mim, e em nada me agradava satisfazê-lo.
Mais adiante pude alcançar de novo o domínio total de minha mente, a possibilidade de ler e meditar muito, obrigado pelo repouso. Me acompanhavam as forças físicas suficientes para escrever durante longas horas, as quais compartilhava com a reabilitação e os programas pertinentes de recuperação. Um sentido elementar comum me indicava que essa atividade estava a meu alcance. Por outro lado me preocupou sempre, ao falar de minha saúde, evitar ilusões no caso de um desenlace adverso, trariam notícias traumáticas a nosso povo no meio da batalha. Prepará-lo para minha ausência, psicológica e politicamente, era minha primeira obrigação depois de tantos anos de luta. Nunca deixei de sinalizar de que se tratava de uma recuperação "não livre de riscos".
Meu desejo sempre foi cumprir o dever até o último alento. É o que posso oferecer.
A meus queridos compatriotas, que me deram a imensa honra de ser eleito em dias recentes como membro do Parlamento, em cujo âmago se devem adotar acordos importantes para o destino de nossa Revolução, lhes comunico que não aspirarei nem aceitarei --repito-- não aspirarei nem aceitarei o cargo de presidente do Conselho de Estado e comandante em chefe.
Em breves cartas dirigidas a Randy Alonso, diretor do programa Mesa Redonda da Televisão Nacional, que foram divulgadas por um pedido meu, se incluíam discretamente elementos desta mensagem que hoje escrevo, e nem sequer o destinatário das missivas conhecia meu propósito. Tinha confiança em Randy porque o conheci bem quando era estudante universitário de jornalismo, e me reunia quase todas as semanas com os representantes principais dos estudantes universitários, no que já era conhecido como o interior do país, na biblioteca da ampla casa de Kohly, onde se abrigavam. Hoje, todo o país é uma imensa Universidade.
Parágrafos selecionados da carta enviada a Randy em 17 de dezembro de 2007:
'Minha mais profunda convicção é de que as respostas aos problemas atuais da sociedade cubana --que possui uma média educacional próxima a 12 graus, quase um milhão de graduados universitários e a possibilidade real de estudo para seus cidadãos sem discriminação alguma-- requerem mais variantes de resposta para cada problema concreto que as presentes em um tabuleiro de xadrez. Nem um só detalhe se pode ignorar, e não se trata de um caminho fácil, se é que a inteligência do ser humano em uma sociedade revolucionária há de prevalecer sobre seus instintos.
'Meu dever elementar não é aferrar-me a cargos, nem muito menos obstruir o passo a pessoas mais jovens, senão aportar experiências e idéias cujo modesto valor provem da época excepcional em que vivo.
'Penso como Niemeyer que se deve ser conseqüente até o final.'
Carta de 8 de janeiro de 2008:
"...Sou decidido partidário do voto unido (um princípio que preserva o mérito ignorado). Foi o que nos permitiu evitar as tendências a copiar o que vinha dos países do antigo campo socialista, entre elas o retrato de um candidato único, tão solitário como solidário a Cuba. Respeito muito aquela primeira tentativa de construir o socialismo, graças à qual pudemos continuar o caminho escolhido."
"Tinha muito presente que toda a glória do mundo cabe em um grão de milho", reiterava naquela carta.
Trairia portanto minha consciência ocupar uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total, que não estou em condições físicas de oferecer. Eu o explico sem dramatismo.
Felizmente nosso processo conta com quadros da velha guarda, junto a outros que eram muito jovens quando se iniciou a primeira etapa da Revolução. Alguns quase crianças se incorporaram aos combatentes das montanhas e depois, com seu heroísmo e suas missões internacionalistas, encheram de glória ao país. Contam com a autoridade e a experiência para garantir a substituição. Dispõe igualmente nosso processo da geração intermediária que aprendeu junto a nós os elementos da complexa e quase inacessível arte de organizar e dirigir uma revolução.
O caminho sempre será difícil e requererá o esforço inteligente de todos. Desconfio das sendas aparentemente fáceis da apologética, ou da auto-flagelação antítese. Preparar-se sempre para a pior das variantes. Ser tão prudentes no êxito como firmes na adversidade é um princípio que não se pode esquecer. O adversário a derrotar é notavelmente forte, mas o temos mantido a distância durante meio século.
Não me despeço de vocês. Desejo somente combater como um soldado das idéias. Seguirei escrevendo sob o título "Reflexões do companheiro Fidel". Será mais uma arma do arsenal com a qual se poderá contar. Talvez minha voz se escute. Serei cuidadoso.
Obrigado.
Fidel Castro Ruz,
18 de fevereiro de 2008,
17h30"
Tradução: Fabio de Paula

ENTREVISTA COM FILHA DE CHE GUEVARA

..... Entrevista com Aleida Guevara, a filha do Che .....

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01/06/2005 - A médica cubana Aleida Guevara, 44 anos, uma das filhas de Che Guevara, veio ao Brasil participar de uma atividade promovida pelo MST. Nesta conversa, comandada pelo jornalista Fernando Evangelista, ela fala sobre sua infância, sobre seu pai, sobre Cuba, sobre o Brasil e o governo Lula. Aleida diz que em seu país o povo tem mais liberdade de expressão do que em qualquer outro lugar e garante que a continuidade do Estado Socialista, depois de Fidel Castro, está plenamente assegurada. Vale a pena conferir. Leia na íntegra.

Fernando Evangelista - Quais são as lembranças mais vivas de sua infância?
Tenho muitas lembranças, ainda não sou tão velha... Há muitas imagens e recordações, mas acredito que as mais bonitas se relacionam com minha mãe, porque com meu pai vivi muito pouco tempo, só até os 4 anos e meio de idade. Minha mãe esteve ao nosso lado durante toda a vida. Ela conseguiu que sentíssemos a presença de meu pai, ainda que ele não estivesse presente. Somos quatro irmãos. Já ouviu dizer que quando há um chinês em perigo todos os demais saem a ajudá-lo? – éramos assim. E assim segue sendo. Da infância recordo os jogos, as travessuras, ir pela rua numa bicicleta com uma roda só, lembro-me de construir um brinquedo que é um pedaço de madeira com quatro rodas de patins e, sentada, dirigir ladeira abaixo. Nascemos depois da Revolução, todos. Sou a mais velha, tenho 44 anos, ou seja, nasci no final de 1960, quando já havia quase dois anos de revolução. Foi uma infância muito tranqüila, muito linda, mas com muitas carências econômicas. Por exemplo: meus irmãos, em um certo momento, não tinham roupas íntimas. Uma vez, minha mãe teve de fazer cuecas com suas blusas velhas. Era uma vida normal, como a de qualquer criança de Cuba daquela época. Com essas carências materiais, mas muito carinho, afeto, ternura. Evidentemente, tínhamos a saúde garantida, isso é muito importante para as crianças, e uma educação totalmente aberta e gratuita.

Ricardo Viel - E como era na escola, sendo a filha do Che?
Sempre fui uma estudante muito boa, mas não gostava da escola. Tentava matar aula ou pelo menos chegar atrasada. Minha mãe, com isso de sermos filhos do Che, sempre disse que não podíamos aceitar privilégios de nenhum tipo, nem que nos tratassem de forma diferente, para o bem, ou para o mal. Eu era mais uma dentro da classe e tentava me comportar da melhor forma possível. Minha irmã e eu sempre fomos dirigentes estudantis, vanguarda do grupo. Os meninos, não. Eram um desastre. Fomos criados pela mesma mulher, sob o mesmo teto, mas eles tinham outra maneira de ver o mundo. No final, acredito que minha mãe realizou seu sonho. Ela é de origem camponesa, sempre quis que seus filhos fossem universitários e, é claro, revolucionários. E nós quatro somos integrados ao processo revolucionário e somos profissionais graduados na universidade.

Fernando Evangelista - E lembranças do seu pai? Da última vez em que vocês se viram? Ele tinha passado um tempo na África, depois retorna a Cuba para organizar a guerrilha na Bolívia. Chega à Ilha disfarçado, com o nome de Ramón, não é isso?
Sim, o velho Ramón. Não sabíamos que era meu pai. Mami nos disse que íamos ver um amigo dele. Fomos com ela a uma casa conhecer esse senhor. Era um homem velho, vestido de preto, com uma camisa branca – isso nunca vou esquecer –, com o cabelo... meio ruivo, quase careca, a parte de trás cobrindo um pouco as orelhas. Fomos apresentados e, na hora do jantar, ele se sentou na cabeceira da mesa. Desde que meu pai foi embora, eu tomei esse lugar. Quando fui sentar ali, o velho Ramón disse que não, que ali se sentavam os anfitriões. Primeiro, teve de me explicar o que era um anfitrião, porque eu não tinha idéia do que fosse. Ele explicou e permitiu que eu me sentasse na outra cabeceira. Sentei ali e disse que ele não parecia ser amigo do meu pai. Minha mãe já tinha dito a ele que eu, apesar da pouca idade, conhecia todos os gostos do meu pai. Assim, ele teria de ter muito cuidado na sua maneira de agir. Quando eu o vi servir o vinho tinto puro – meu pai tomava sempre com água –, dei um pulo: “Você não é amigo do meu pai, não, você está tomando vinho tinto puro e o meu pai tomava com água!” Ele tentou me explicar, mas não entendi, fui lá e coloquei água no copo dele. Minha mãe conta que ele não cabia dentro das roupas, estava inchado de emoção de ver como eu, uma criança daquele tamanho, defendia seus gostos. Depois da comida, meus irmãos e eu começamos a brincar. Lembro que eu corria ao redor de uma mesa de mármore, com meus irmãos atrás de mim, dizendo: “Viva Cuba livre! Viva Cuba livre!” Nisso, escorreguei e dei uma cabeçada horrível na ponta da mesa. Eu tinha acabado de comer, meu pai – que era médico – sabia o perigo de um golpe na cabeça, ainda mais depois de uma refeição. Ele me toma em seus braços, me toca, examina e, dessa maneira me transmite alguma coisa. A tal ponto que minha mãe e ele estavam sentados tentando conversar e eu fiquei dizendo que tinha um segredinho para contar a ela. Minha pobre mãe já tinha tido uma experiência fatal comigo com essa história de segredinho. Sempre fui uma menina que falava muito, e sempre dizia o que pensava com uma tranqüilidade espantosa. Um dia, em um edifício em Cuba, estávamos descendo de elevador e no primeiro andar entra o poeta cubano Nicolás Guillén. Era um homem tão feio, que foi um choque para mim. Chamei minha mãe e disse que queria contar um segredinho. Ela baixa a cabeça e eu digo a plena voz: “Mamãe, este homem é um chimpanzé!... Dá para imaginar a vergonha que a minha mãe passou. Desde então, eu estava proibida de contar segredinhos. Por isso, naquele momento com meu pai ela não queria me deixar falar. Só depois de muita insistência, quando perceberam que não conseguiriam conversar, ela me disse: “Tudo bem, qual é o segredinho?” Eu digo novamente a plena voz: “Mamãe, acho que este homem está apaixonado por mim”. Foi uma coisa linda, porque ele se emocionou muito nesse momento. Foi a transmissão dessa sensação de gostar de alguém ainda que não possa dizer com palavras e às vezes nem sequer com gestos. Ele fez isso comigo e eu percebi. É claro que eu estava confusa, não sabia que era meu pai e me chamou a atenção o fato de que um homem grande me protegesse dessa maneira. Assim concluí, sabiamente, que ele estava apaixonado por mim. Foi a última vez que nos vimos.

Paulo Evangelista - Dois anos depois desse encontro o Che morreu na Bolívia. Como você ficou sabendo?
Eu estava doente nesses dias. Fidel tinha mandado nos tirar da escola, porque nessa altura todo mundo já sabia que alguma coisa havia acontecido e, para que as outras crianças não comentassem algo conosco, ele nos mandou a uma casa especial fora da cidade, em Santa Maria. Mas tive uma infecção em um dente e precisei ir a Havana me tratar. Fiquei na casa da tia Célia. Ela depois de me dar uns antibióticos horríveis, me disse: “Leve este prato de sopa ao meu quarto, sua mãe está lá”. Ah, minha mãe! Bom, eu tinha 6 anos, no mês seguinte faria 7. Então, fui levando o prato de sopa e, quando entro, minha mãe está chorando, chorando desconsoladamente. Ela chorava com facilidade, mas, era uma mulher muito forte. Eu nunca a tinha visto naquele estado. Aquilo me impactou. No dia anterior, Fidel havia mandado me buscar junto com minha irmã mais velha, Hildita (Hilda Beatriz). Ele queria nos dar a notícia, mas minha mãe não deixou, disse que ela é que tinha que dar. Então Fidel inventou uma carta para nos dar uma explicação. Nessa carta, meu pai teria dito que, se um dia ele morresse em combate, não deveríamos chorar, pois, quando um homem morre como quer, não se deve chorar por ele. E Fidel fez a gente dar nossa palavra de pionera, mas eu ainda não era pionera e ele falou: “Então me dê a sua palavra de revolucionária que, se isso um dia acontecer, você não vai chorar”. Aí eu disse: “Dou a minha palavra de revolucionária”. Meu tio Fidel era como meu pai, eu o adorava, o adoro, isso nunca mudou. Podemos discutir, mas gosto muito dele, de verdade. E, nesse momento, ele era a minha figura paterna, minha figura masculina. Imagina o que o meu tio teve de me explicar. Isso eu esclareço porque uma vez contei essa história para um jornalista alemão e o filho da puta publicou que se o Fidel tinha inventado uma carta, poderia muito bem ter inventado outra. Uma estupidez total, porque esse homem estava fazendo com que duas meninas pequenas, que vão receber quem sabe a notícia mais dura de suas vidas, não reagissem mal, entendessem o que aconteceu com seu pai. O que ele tentou foi nos preparar para esse momento. Coisa que sempre lhe agradeci, porque nesse outro dia, em que eu estava com minha mãe, ela estava na cama e me disse: “Senta, tenho que falar com você”. Não lembro de minha mãe ter dito: “O teu pai morreu”. Só lembro da voz da minha mãe me lendo a conhecida carta de despedida: “Quando lerem esta carta será porque já não estou entre vocês”. Segue toda a carta, que é muito bonita, e ao final diz: “Um beijo grande do papai”. Você pode imaginar que, nesse momento, me dei conta de que já não teria mais o papai e uma lágrima começa a correr dos meus olhos. Sobretudo porque quem está lendo a carta é minha mãe, chorando. Começo a chorar, mas lembro de tio Fidel. Me recomponho e digo: “Mamãe, não podemos chorar pelo papai, porque ele morreu como queria.” Isso levanta minha mãe, e por isso digo que vou sempre agradecer a Fidel por me ter dito aquilo no dia anterior. Foi muito bonito. Fiquei dormindo com ela em uma cama de casal e quando acordei tinha uma almofada ao meu lado para que eu não caísse. Aí perguntei para minha mãe: “O que é isso?” E ela me disse: “Seu tio veio de noite e pôs essa almofada para que você não caísse”. E eu respondi: “Ah, é que meu tio acha que ainda sou pequena”. Eu já dormia em uma cama sem almofadas havia muito tempo, mas ele não sabia. Bom, esse foi então o momento em que eu soube que meu pai tinha morrido.

Fernando Evangelista - Quando você começou a tomar contato com as coisas que seu pai fez e escreveu?
Quando tinha 16 anos, minha mãe me deu algumas folhas mimeografadas. Comecei a ler e falei: “Mãe, esse cara é bom, gostei da história”. Só depois, quando continuei lendo, me dei conta de que o autor era meu pai. Nossa, meu pai! Foi muito lindo para mim, porque eu sempre me orgulhei de ser filha dele e ali me senti ainda mais orgulhosa. Aos 23 anos meu pai já era um homem genial porque, em primeiro lugar, teve a desfaçatez de contar coisas que você nunca contaria. Por exemplo, quando dá uma dor de barriga nele na casa de uns alemães e não tem água. Imagina você ir ao banheiro e não ter água. Ele não ia deixar essa má lembrança aos pobres alemães que tinham sido tão hospitaleiros... O que você acha que ele fez? Colocou a bunda para fora da janela e defecou ao ar livre. Olha o que ele fez! E ele ainda escreve isso. Aí, no outro dia, ele volta para ver onde tinha deixado a amostra e descobre que era na mesa onde os pobres alemães colocavam os figos para secar... Isso ele conta no livro. Essas coisas me impressionaram, porque, olha, já fiz bastante coisa na vida, mas não conto nem morta. Não posso, não passa pela minha cabeça contar, mas ele descreve com muita tranqüilidade. Isso me mostrou a honestidade desse homem. Sem nenhum tipo de duas caras, com uma tremenda naturalidade, diz exatamente o que pensa e o que faz, nunca mente, nunca. Isso vai acompanhá-lo durante toda a sua vida.

Fernando Evangelista - Esse texto que você leu era o diário da primeira viagem do Che pela América Latina?
Sim, li quando tinha 16 anos, uma idade muito difícil porque você começa a se perguntar muitas coisas: por que eu gosto do meu pai? Meu pai nunca esteve comigo e o amor aos pais não é uma coisa automática. Não é porque você é pai que seus filhos já gostam de você, tem de saber conquistar esse carinho, esse respeito dos filhos. Ele não esteve presente para ganhar isso, então comecei a me perguntar muitas coisas, fui buscando na memória todo o meu contato com ele: quando o acompanhei no trabalho voluntário; quando pela primeira vez me deu um livro; a primeira vez em que vimos juntos uma luta de boxe; o dia em que o vi se despedir do meu irmão, ainda que eu não soubesse que ele estava se despedindo; a lembrança de um homem que me estende a mão e vai caminhando comigo, me dizendo algo, como eu devo me comportar. A imagem é pouco nítida, mas me lembro de estar com a mão levantada – porque ele era muito mais alto que eu – e ele vai me dizendo algo. Comecei a buscar essas coisas na memória, meus irmãos às vezes tiram sarro de mim, principalmente Camilo, dizendo que tenho memória de elefante. Mas foi a necessidade, busquei na memória tudo o que demonstrava que esse homem havia me amado. E quando encontrei, quando soube realmente que ele havia me amado, não tinha outra coisa a fazer a não ser devolver esse amor e amá-lo também, ainda que ele não estivesse ao meu lado. Acho que isso foi responsabilidade da minha mãe. Aprendemos a conhecê-lo, a entendê-lo, a compreender suas atitudes diante da vida e, pouco a pouco, fomos incorporando essas atitudes à nossa vida. Inicialmente, quando você é criança, repete o que as outras pessoas dizem, mas depois vai crescendo dentro desse mesmo lar, dentro dessa mesma vida e, se esse amor e essa ternura que ali residem o convencem, você incorpora o que lhe ensinaram. Acho que, com o tempo, foi isso que fizemos. E agora já somos seres pensantes e decidimos por nós mesmos trilhar o mesmo caminho.

Gabriela Tlaija - Você fez algumas missões internacionalistas. Como foram essas experiências?
Aos 23 anos fui à Nicarágua, foi minha primeira missão como médica e a primeira vez que saía de Cuba por um longo período, um ano. E um ano vivendo fora de Cuba, para um ilhéu... não sei como as pessoas que saem de Cuba resistem. Juro que toda vez que saio de Cuba encontro gente boníssima, gente que gosta do meu país, do meu povo e me sinto em família, mas passados quinze dias - não ponha um a mais - sinto tanta falta, tenho uma saudade, como vocês dizem, que não agüento. Nasci em uma ilha e viver no continente me mata, necessito do mar de um lado e do outro.E quando fui à Nicarágua, veja o que minha mãe me disse: “Por que você vai?” Respondi: “Vou porque você me ensinou, porque me educou no exemplo do meu pai. Meu pai era um internacionalista e estou viva por isso. Tenho uma dívida a pagar à humanidade, por isso vou à
Nicarágua”. “Não me provoque”, ela me diz. “Não estou provocando, estou te dizendo isso porque você me ensinou”. Fui, e foi uma experiência extraordinária. Lá cursei o último ano de medicina e fiz de tudo. Em Cuba eu tinha recebido um ou dois bebês e, se a mãe tivesse algum problema, eu não a examinava, vinha um médico imediatamente. Chego à Nicarágua sem ter passado pela cirurgia, me colocam na ginecologia obstétrica, me mandam para a sala de parto e um residente me diz: “Chela” – assim eles chamam as loiras –, “venha!” Mas vou como, com quem? “Com quem? A mulher está parindo!” Você não pode imaginar o que é receber um bebê nos seus braços sem saber o que se está fazendo. Nem quero lembrar. Depois, fiz cem partos sozinha, perfeitos. Foi uma experiência tremenda porque pela primeira vez comprovei o que Cuba significava. Sair de um lugar onde você tem tudo garantido, onde tem uma série de privilégios sem se dar conta deles. Por ter nascido com eles, você não percebe o trabalho que deu para conquistá-los. Então, quando você vai a esses lugares, sente de verdade tudo o que tem e defende muito mais essas coisas.

Fernando Evangelista - Isso de sair de Cuba para perceber as conquistas sociais alcançadas com a revolução foi mais ou menos a mesma sensação que você teve quando veio ao Brasil pela primeira vez? Foi um choque comparar as diferenças sociais entre os nossos países?
Eu já tinha conhecia a realidade latino-americana. Mas o Brasil sempre chega a Cuba pelo samba, pela alegria de viver, pelas riquezas, pela Amazônia, pelos grandes rios, pelas suas madeiras valiosas. Ou seja, é um país sempre dos sonhos e, quando cheguei pela primeira vez a São Paulo e vi meninos nas ruas, drogados, pedindo esmolas, famintos, descalços, em farrapos, não pude acreditar. Eu sabia dessa realidade, mas não conseguia entender que um país tão rico tivesse uma só criança nessas condições. Ainda não consigo entender. Venho de um país pobre que praticamente não tem recursos, sem grandes rios, sem petróleo, sem minerais importantes, exceto o níquel, mas esse país vive com dignidade. Em Cuba não existe uma criança que viva na rua ou viva de forma miserável. É um país onde todas as crianças vão à escola, todos têm assistência de saúde gratuita, todos têm garantida uma alimentação mínima para viver com dignidade. Então eu penso: “Porque nós podemos e um país como o Brasil não? Como é possível?” A única coisa que nos diferencia é o sistema social. É uma escolha. A única maneira que nossos povos têm de seguir adiante, de conquistar realmente o que é seu, é através de uma mudança social real. Sempre penso no socialismo porque é o sistema que conheço e que pode realmente dar resultados aos nossos povos. No entanto, a Venezuela, mesmo não sendo um sistema socialista, está demonstrando com a revolução bolivariana que é possível ter um sistema social eficaz. O que acontece é que a burguesia é tão burra, tão bruta, que não se dá conta disso e está pressionando o processo bolivariano, forçando uma radicalização. São tontos porque esse não é o objetivo do presidente. Então, essa poderia ser também uma via para a América Latina, onde a maioria tem pavor do comunismo e do socialismo. Veja bem, poderia ser uma via, não é socialismo. É possível conviver nessa sociedade que tem coisas marcadamente capitalistas, mas o povo é dono do que produz e, pela primeira vez, desfruta das coisas que tem, que são usadas em benefício de toda a população. Isso é o que não acontece no resto da América Latina.

Fernando Evangelista - Você disse que na América Latina, fora Cuba, o único governo de esquerda é a Venezuela. O Brasil, mesmo com o governo dito popular, estaria seguindo pela direita?
O que eu digo é que o PT é um partido de esquerda, mas não olhe os partidos pela sua ideologia e sim pela sua eficácia, pela sua atividade social, pelo que consegue fazer pelo seu povo. Por aí vocês terão a resposta. Eu somente posso ver as estatísticas e as estatísticas talvez mintam, mas o que estão dizendo é que não se alcançou o que havia sido planejado. Vocês dirão se estou equivocada ou não, se as estatísticas mentem ou não. Vocês são os únicos que podem dizer. Eu aqui sou alguém de fora. Não digo estrangeira, porque esta também é a minha terra, mas sou mais de fora, então não tenho o direito de julgar porque não vivo esta realidade, vivo a minha. E nesse sentido respeito, é claro. Mas o que chega a mim são essas informações, talvez vocês tenham outras e possam me esclarecer, não?

Ricardo Viel - Eu tenho essa dúvida, não sei se o governo brasileiro não faz porque não quer ou porque não pode ou porque tem medo. Os países ditos periféricos vivem sob esse medo cotidiano, o medo do novo, da mudança, um medo que nos paralisa e enfraquece.
Em 1966, Che disse que a Guerra do Vietnã não era nada mais que um método utilizado pelos Estados Unidos para provocar medo, de tal maneira que qualquer povo do mundo que ousasse não obedece-los, não aceitar suas ordens, poderia correr o risco do Vietnã. E quem gosta de uma guerra? Quem quer uma guerra? Nenhum povo pode querer uma guerra. Mas aí entra o que Che dizia: “É preferível a guerra a viver como bestas, como animais”. Se esse é o risco, temos de aprender a aceitá-lo, temos de perder o medo da guerra e conquistar o que queremos pelos métodos que os povos decidirem, sem temer as conseqüências. Porque sempre que se inicia um processo social importante começam as pressões. Imagina se toda a riqueza deste país fosse realmente do povo brasileiro, que nada que vocês não quisessem não fosse para o estrangeiro. Que vocês pudessem obter, ao vender qualquer riqueza, os ganhos necessários para transformar a sociedade. Eu quero que alguém me explique como um povo do chamado Terceiro Mundo, como Cuba, pode buscar capital para fazer uma educação gratuita e universal, para fazer uma saúde pública gratuita e geral. Como? Onde está o dinheiro? Como sustentar esse sistema se você não é dono do que produz? Então, a primeira coisa que tem de fazer na América Latina é ser dono de nossa terra, de nossa produção, começando por aí. O que implica isso? Não ao Fundo Monetário Internacional, não ao Banco Mundial. Eles têm de respeitar as nossas condições, sem que nos coloquemos à sua disposição, como está acontecendo neste momento. Mas isso acarreta conseqüências. O bloqueio a Cuba segue há mais de 45 anos, e o bloqueio não é fácil. Nós não estamos dizendo: “Façam o que estamos fazendo”. Os Estados Unidos se encarregaram de demonstrar a todos vocês quais são as conseqüências de fazer o que Cuba fez, mas estamos aí. Indiscutivelmente, vivemos melhor do que vocês como povo. De modo geral, vivemos melhor do que vocês. Temos carências materiais, às vezes não temos nem calcinha nem sutiã, é verdade. Mas você não nasceu com essas coisas, não são tão necessárias, você bota uma calça e segue andando, uma saia e segue andando. Os indígenas, durante toda a sua vida, andaram nus, isso não é nada novo, é uma coisa velha, velhíssima, sem problema nenhum. Não é uma coisa necessária para viver, mas a saúde sim, a alimentação sim, e a dignidade também. A educação é muito importante e isso Cuba tem garantido. Você coloca em uma balança o que fazer. Talvez perca algumas comodidades, mas ganha outras coisas. Eu fico pensando nas populações indígenas deste país, por Deus, quando terão assegurados seus direitos e o respeito que merecem? Quando vamos lhes dar isso? Porque somos nós quem as exploramos. Somos nós que ignoramos essas pessoas, que damos as costas para elas, que não as colocamos no lugar que merecem. Até que não decidamos isso e não nos dermos conta de tudo o que estamos perdendo, essas coisas continuarão acontecendo. Essa é uma decisão do povo.

Ricardo Viel - O que o bloqueio acarreta no dia-a-dia de um cubano?
Ui, muchacho! Entre em um ônibus cubano para você ver! Em Cuba, levanta-se às 5 da manhã para estar às 8 no trabalho, 8 e meia agora, porque com o problema do petróleo nos deram meia hora a mais. E os ônibus às vezes passam, mas às vezes não. Em uma bicicleta tem de pedalar muito. Havana tem 2,5 milhões de habitantes, as distâncias são grandes, 17 a 20 quilômetros do trabalho até em casa, de bicicleta para lá, de bicicleta para cá, não é fácil.

Paulo Evangelista - Gostaria que você desse exemplos dos efeitos do bloqueio na área da saúde.
No hospital em que trabalho temos o mesmo aparelho de raio X há quarenta anos. Ainda o estamos usando, colocamos um aramezinho e segue funcionando. E funciona bem, mas agora já vamos comprar um novo. Atualmente, há um projeto muito lindo em Cuba que visa arrumar os grandes hospitais do país. Um projeto muito ambicioso. Apesar de todas as agressões, de todas as besteiras do senhor Bush, não nos amedrontamos e seguimos adiante, criando, melhorando o que precisa ser melhorado, superando as dificuldades.

Fernando Evangelista - Uma das críticas que se fazem a Cuba é quanto à falta de liberdade, liberdade de expressão e de democracia. É possível falar nesses valores tendo um único partido e um único jornal?
Existem mais jornais. Mas há um só partido porque somos uma sociedade socialista. Você não pode comparar a água com o vinagre, não são nem parecidos. Com a gente é a mesma coisa, como vai comparar a sociedade capitalista com a sociedade socialista? São dois sistemas diferentes. No socialismo só existe o Partido Comunista, não há mais partidos. Com a diferença de que nessa sociedade em que você vive pode haver vinte partidos, mas a maioria deles é o mesmo cachorro com uma coleira diferente, a única diferença é o nome, mais nada. Em geral, defendem o direito de uma minoria e nas eleições se põem a mentir, e no final continua a mesma coisa. Isso é democracia? Democracia é o poder do povo. A palavra vem do grego e significa “poder do povo”. E esse povo tem poder? O povo espanhol, com toda a sua democracia, teve poder para decidir se ia ou não à Guerra do Iraque? Disseram não 91 por cento, e seu governo disse sim, foi para a guerra. E o que aconteceu? Mudaram o governo? Ele foi mudado depois, nas outras eleições, depois de quase dois anos na guerra. Aí vieram as eleições e, por causa de um atentado terrorista, decidiram mudar, mas não porque existisse uma consciência social estabelecida. E o que aconteceu com Bush é democracia? Aquilo pode ser democracia? Quando você fala de democracia, fala de um povo que tem poder de decisão. Nesta Terra, o único povo que tem poder de decisão é o povo cubano. É o único que diz não aos Estados Unidos e mantém o não até as últimas conseqüências, o único que discute suas leis com o povo, nos bairros, com os trabalhadores leis que depois a Assembléia Nacional vai aprovar com o beneplácito real da população. Isso é o poder do povo. E o povo é o único que pode dizer: “Não estou de acordo com isso”. E leva-se em conta o não estar de acordo. Onde você viu isso? Isso é democracia. Liberdade de expressão? Mas venha cá, o que é liberdade de expressão? Estive na Europa muitas vezes e muitos jornalistas me entrevistaram, entrevistas de até duas horas de duração, e depois publicaram: “A filha de Che está de passagem por Paris”. Ponto, acabou. Ou, o pior, publicaram coisas que eu não disse. Ou outros que me disseram: “Não posso publicar a entrevista se não colocar a palavra regime”. “Eu não disse regime, eu disse Estado socialista.” “Ah, se não mudo, não posso publicar.” “Então não publique, mas você não pode mudar as minhas palavras.” Isso é liberdade de expressão? Liberdade de expressão é estarem lhe dizendo o que você tem de dizer ou o que não pode dizer? Liberdade de expressão tenho eu, que posso parar no meio da rua e dizer quatro disparates e não acontece nada, nada! Ah, se falo mal do Fidel é possível que alguém venha e me dê um safanão, isso, sim, mas a polícia não pode me tocar. No meu país, a polícia não pode me tocar, a não ser que eu esteja agredindo uma outra pessoa, então nos separam, mas não pode bater em mim. São coisas muito diferentes quando você fala de liberdade de expressão. Vou lhe dizer uma coisa real, estamos falando de uma sociedade socialista sobre a qual a maior parte dos jornais do mundo, os de maior tiragem, em todos os idiomas, busca notícias contra Cuba 24 horas por dia. Se um cubano aparece em Nova York, isso é notícia. Se um haitiano morre para chegar lá, isso não é notícia. Se matam vinte mexicanos tentando cruzar a fronteira, isso não é notícia. Se são brasileiros que tentam chegar aos Estados Unidos e os expulsam, isso não é notícia. Notícia é se um cubano chega aos Estados Unidos. Ah, isso sim. Sim, porque o pobrezinho está fugindo do socialismo. É quando você se pergunta: “Bom, se todo mundo manipula isso e fala de todas essas coisas, porque eu, no meu país, em meu próprio país, vou responder aos interesses desses senhores e não vou responder aos interesses do meu povo?” Nos jornais do meu país existe uma linha direta, através da qual o povo faz suas críticas. Nas mesas-redondas, todos os dias, às 6 da tarde, se discutem problemas internacionais e problemas nacionais, e há telefones à disposição do povo, para onde se liga e pergunta. E recebem resposta, que é o mais importante. Não é perguntar, é receber resposta. Então, para mim, isso é liberdade de expressão de verdade. Os jornais cubanos são fiéis à maioria do povo cubano, nunca vão se submeter a uma minoria vendida aos interesses dos Estados Unidos, isso eu asseguro. Os nossos respondem à maioria do nosso povo, às necessidades e às críticas de nosso povo. Estão ali, você pode ler quando quiser, se critica até Maomé, mas dentro do nosso sistema e dentro da nossa sociedade.

Fernando Evangelista - Eu estive em Cuba em 1997, durante o Festival Mundial da Juventude. Fui com uma câmara para fazer um documentário e, quando tocava em determinados assuntos, as pessoas pediam para desligar porque sentiam medo de expor suas opiniões. Não para proteger o Estado socialista, mas com medo de serem tachadas de contra-revolucionárias, mesmo fazendo críticas leves.
Ser considerado contra-revolucionário em Cuba não é nada agradável, porque o povo em geral é revolucionário e te van pasar la cuenta. Estamos em uma guerra, estamos bloqueados e ameaçados pela potência econômica econômica e militar mais forte do planeta. Então, você não pode permitir nenhum tipo de debilidade, de fraqueza. Temos de estar sempre em guarda e vigilantes. É possível que em algum momento tenhamos exagerado, também é possível que algumas pessoas não saibam ainda o poder que têm. Essa é uma das críticas que sempre faço ao poder popular cubano, que o povo ainda não sabe o poder que tem nas mãos. Vou dar um exemplo que eu mesma vivi. Minha tia tem 85 anos de idade e um tempo atrás ela me disse que tinha ido à policlínica para tratar um dente que doía. Disseram que não podiam atendê-la, que não havia anestésico. E ela fica assim, com o dente doendo. Aí vem uma senhora e pergunta: “O que você está fazendo aqui?” Minha tia explica e a senhora lhe diz: “Ah, querida, então paga, se você pagar, eles fazem”. E minha tia: “Como? Este é um serviço gratuito para o povo”. Ela me contou isso, ligou muito indignada e disse: “Olha o que me aconteceu, me disseram que se eu pagasse tratariam meus dentes”. “Como? Quem te disse? Quem é a doutora que falou que não poderia te tratar?” Ela me deu o nome e eu: “Bem, a Assembléia do Poder Popular é amanhã, você se levanta e conta o que aconteceu. Porque ali é o lugar do povo e isso não podemos permitir, porque a saúde pública é totalmente gratuita e a assistência dentária também, a não ser que você vá colocar uma prótese ou fazer um tratamento muito especial, aí, sim, você vai pagar algo. Mas, fazer todas as coisas normais é grátis, é obrigação do Estado”. Minha tia disse: “Você acha? Colocar isso na Assembléia do Poder Popular?” “Qual o medo? Qual o problema? Levante-se e diga.” Foi o que ela fez. No dia seguinte estava o diretor da policlínica pedindo desculpas. O problema foi solucionado. Veja se a gente tem poder ou não.

Fernando Evangelista - Mas não é parte desse mesmo povo que migra para os Estados Unidos?
Há pessoas que têm sérios problemas econômicos, de moradia, de transporte e pensam que nos Estados Unidos podem resolver seus problemas. É uma imigração econômica, única e exclusivamente. O que acontece? Para mim, quando você forma um homem em uma sociedade diferente, por mais econômica que seja a imigração, há também uma parte ideológica. Não conseguimos chegar até eles, não soubemos educá-los, não soubemos fazê-los perceber o que é realmente importante. Essa pode ser uma das causas: que não tenhamos trabalhado adequadamente e que existam pessoas que não tenham captado o melhor do socialismo. É real, é verdade, isso pode acontecer. Pode acontecer também que uma pessoa se sinta realmente muito pressionada, muito esmagada pela propaganda. Veja que o único país socialista do continente é o nosso e chove propaganda todos os dias. É o único país do mundo que tem uma rádio nos Estados Unidos, em perfeito espanhol, transmitida só para Cuba, com emissão e freqüência diárias. Os Estados Unidos têm um compromisso com Cuba de dar 20.000 vistos anuais e nunca dão. O que estão provocando? Que você saia ilegalmente. Recomendo que vocês vejam um documentário feito por uns catalãos, chamado Los Balseros. Vale a pena ver, ele mostra a situação econômica de Cuba, mas também mostra a manipulação que é feita nesse sentido. Quando você já tem uma família nos Estados Unidos está desesperado para se reunir à sua mulher e seu filho e não te deixam entrar, o que você faz? Tenta ir de qualquer maneira e isso se converteu em um negócio. Porque há pessoas que lucram com a vida de seres humanos. Eles vêm a Cuba em lanchas rápidas para, por 1.000 dólares – e conseguir 1.000 dólares em Cuba é difícil de verdade –, você ir embora nessas lanchinhas. O pior é que há pessoas que, quando a lancha está cheia, continuam cobrando os 1.000 dólares, e jogam as pessoas em alto-ar, porque senão a lancha afunda. Tudo isso aconteceu. E o que você sabe sobre isso? Onde você viu isso publicado? Onde no mundo essa notícia foi dada? Existe uma lei do governo estadunidense que garante todo tipo de apoio aos cubanos que chegarem clandestinamente aos Estados Unidos. O cubano é o único povo no mundo que tem o privilégio de chegar ilegalmente aos Estados Unidos e ter moradia garantida, trabalho garantido, um dinheiro para começar e, depois de um ano, se você quiser, você é cidadão estadunidense. Que outro povo tem esse privilégio? E por quê? Porque é conveniente para eles provocar esse tipo de crise imigratória para dizer que não se pode viver em Cuba. Uma vez, o tiro saiu pela culatra, mas isso tampouco foi notícia no mundo. O Estado cubano disse: “Está bem, não vamos ser os vilões da história. Querem ir ilegalmente? Podem ir”. Foi quando saiu esse documentário dos balseros. Todos que queriam ir foram. Muitos não chegaram, muitos morreram na travessia. Quando os Estados Unidos viram que Cuba tinha aberto as fronteiras e que ia para lá qualquer quantidade de “coisa” – porque não ia o melhor do país, normalmente o que vai é a escória –, quando se deram conta disso, ligaram para Cuba. Você não sabia disso? Pela primeira vez, a Casa Branca ligou para o Estado cubano e disse: “Não, vocês não podem fazer isso!” E nós dissemos: “Ah, não? Mas são vocês que estão provocando”. “Não, não vocês têm de fechar as fronteiras, não pode ser assim!” Nós dissemos: “Está bem, mas fechamos com condições. Primeiro, que os 20.000 vistos anuais sejam cumpridos. Segundo, se chegar um cidadão cubano ilegalmente aos Estados Unidos, vocês o devolvem a Cuba. Porque se apenas um chegar ilegalmente, voltaremos a abrir as fronteiras. Porque se um chegar, chegam todos os demais.” Pela primeira vez foram concedidos os 20.000 vistos no ano seguinte já não houve mais os 20.000 vistos. Mas, sim, mantiveram a palavra quanto a quase todos que saem ilegalmente. Estes são colocados em um barco e trazidos de volta. O compromisso de Cuba é que essas pessoas não sejam presas a não ser que sejam criminosos. Se são pessoas normais, sem nenhum tipo de delito, se incorporam à sociedade novamente. Tem gente que tentou até três vezes, mas a guarda costeira dos Estados Unidos reteve e devolveu. Quando você escutou tal notícia? Acontece todos os dias, neste momento está acontecendo.

Moema Paiva Pereira - Como o Estado cubano recebe esses dissidentes que são mandados de volta?
Há histórias tremendas sobre isso. Por exemplo: um cubano que vivia nos Estados Unidos roubou 11 dólares, sabe quanto tempo ele ficou preso? Quinze anos. Os cubanos, como não estavam acostumados que a polícia batesse neles, se revoltaram na prisão. Nos anos 80, não sei se você se lembra, houve revolta em vários presídios dos Estados Unidos.Os responsáveis, em sua maioria, eram cubanos. O que fizeram os ianques? Entre outras coisas, começaram a testar novas drogas nos prisioneiros cubanos, colocavam-nas nos alimentos para tranqüilizá-los. Depois decidiram que não queriam essas pessoas nem sequer nos presídios. Para onde iriam mandar? Para onde você acha que os enviaram? Para Cuba. E o que a gente ia fazer? Eram cubanos, tínhamos de recebê-los. Em um avião, de madrugada, presos pelos pés e pelas mãos com cadeados, como se fossem animais, nos mandaram vários grupos de prisioneiros deportados. Algumas dessas pessoas já tinham família nos Estados Unidos, mulher, filhos, mas o governo estadunidense não se importou com isso. Não podem voltar aos Estados Unidos nunca mais. Sobre o senhor dos 11 dólares, quando a lei cubana foi revisar o caso, viu que não poderia mantê-lo preso nem mais um minuto. Aí vem o problema: como encontrar moradia para ele? Em Cuba há dificuldades de moradia e esse senhor se foi havia 15 anos, então onde você vai arrumar uma casa para ele? Além do mais, você tem de lhe arranjar um trabalho. Como você vai explicar a um cubano do povo que ele tem de compartilhar seu trabalho com alguém que havia alguns anos deixou o país porque quis? Uma das coisas mais difíceis que tivemos de fazer nos últimos anos foi convencer várias pessoas a ajudar essa gente, a reintegrá-la à sociedade. Conto, por exemplo, a história de um deles que veio preso nesse avião e, quando seu caso foi revisto, ele já tinha de estar livre, já tinha cumprido sua pena. Seu pai vivia em Cuba, era pescador, negro. E, quando se lhe pediu que aceitasse o filho, disse: “Esse não é meu filho, meu filho morreu quando foi para lá. Eu sou gente desde que essa revolução triunfou. Eu era um negro de merda, ninguém se preocupava comigo, me exploraram por toda a vida, e a única vez que me senti um ser humano foi com a revolução. Ela permitiu que meu filho estudasse, que fosse capitão de barco, e ele se foi. Esse não é meu filho. Não o quero. Ele morreu. E aqui não vem”. E me diz: o que a gente faz? Porque o velho tem toda a razão do mundo para estar ferido. Olha, essas são dores de cabeça de verdade.

Paulo Evangelista - Como é a sua relação com Fidel?
Fidel é meu tio, para mim sempre foi uma figura paterna, sempre foi muito bom e carinhoso. Quando morreu meu pai, ele quis me ver, quis falar comigo e minha mãe me advertiu: “Teu tio seguramente vai querer te dar algo e você não pode pedir nada, entendeu?” Quando fui falar com ele, disse: “O que você quer?” Fiquei sem saber o que falar e pedi um globo terrestre. “Sim, mas o que mais você quer?”, ele perguntou. Ele tinha quatro quadros em sua casa, um camponês, uma camponesa, uma menina camponesa e um menino camponês. Sempre fui apaixonada por aquele menino camponês. Aí eu disse que queria aquele quadro e aquilo lhe deu trabalho, porque eram quatro quadros originais lindíssimos, mas ele me deu o meu menino, que está lá na minha casa. Fidel sempre esteve ao meu lado, nos momentos mais difíceis e nos mais lindos. É um homem que sabe escutar, sempre. Pode ser que alguma coisa o aborreça num momento determinado. Por exemplo, quando ele está entusiasmado com um projeto, e você fala: “Isso não vai funcionar, não vai dar certo”. Aí ele fica irritado. Mas depois entende e modifica seu ponto de vista. É um homem com uma grande capacidade de se intercomunicar com o povo em geral. Meu pai sempre dizia que essa era uma das características mais importantes do Fidel, como dirigente. Sua capacidade de se comunicar com o povo. O povo cubano, na grande maioria, gosta muito dele. E mesmo aqueles que têm outras aspirações reconhecem nele um homem excepcional. É um homem carismático, muito especial, com uma grande capacidade para amar, porque do contrário não teria dedicado toda a sua vida ao povo cubano.

Elis Motta - Como você vê a situação de Cuba pós-Fidel?
Igual. Estaremos no mesmo lugar e com o mesmo sistema. Fidel nos fará muita falta, como guia, como líder. Mas ele é um homem muito inteligente porque estimulou a formação de quadros bastante interessantes dentro do país. Sentiremos muita falta dele, mas seguiremos adiante. Porque, além do mais, não temos outra maneira de viver. Um dia eu estava conversando com uma mulher que ia embora do país e ela me perguntou: “Doutora, se um dia você tivesse de escolher entre suas filhas e a revolução, o que escolheria?” Eu disse: “A revolução. Porque amo tanto as minhas filhas que quero para elas a mesma dignidade e a mesma alegria com que vivi. E para isso é necessária a revolução”.

Fernando Evangelista - É mais ou menos o que o Che pensou quando deixou a família, o cargo de ministro em Cuba, por esse amor...
Ele foi ainda mais longe. Perceba que estou defendendo, sobretudo, o futuro das minhas filhas. Mas meu pai foi mais longe, estava defendendo não somente o futuro dos seus filhos, senão o de muitos homens e mulheres. Não me compare com o meu pai, eu não chego nem a seus pés.

Ricardo Viel - Quando é que você se deu conta disso, que ele amava tanto vocês a ponto de deixá-los em Cuba, a fim de tentar lutar por um mundo mais justo?
Aprendi isso quando o conheci como ser humano, quando o entendi. Mas compreendi ainda mais quando me tornei comunista e entendi que há coisas mais importantes do que meus interesses individuais. Isso para nós é essencial. O que acontece é que a gente não aprendeu a utilizar bem isso. Uma das coisas mais lindas do ser humano é que vivemos em comunidade, não individualmente. E um só não vale nada, como dizia meu pai. O importante é quando você consegue juntar um grupo de homens e mulheres unidos num mesmo ideal. Isso é o que dá força à vida. O resto é passageiro. Veja que hoje você tem dinheiro e amanhã não. Hoje está vivo, amanhã não se sabe. A vida é uma coisa muito simples e muito volátil. Então, a única coisa que resta é viver com dignidade. E fazendo tudo o que você pode fazer por outro ser humano. E o dia em que chegar a sua hora ao menos vai sentir a satisfação de ter feito algo útil por outra pessoa. Isso, para mim, é o mais importante.

Fernando Evangelista - Você diz que é preciso tirar o Che do pedestal, torná-lo menos mito e mais humano...
Não é torná-lo mais humano, é permitir que ele siga sendo humano. O que não se pode perder é essa perspectiva. Você não pode se comparar a Deus, quem vai ser igual ou melhor que Deus? Ninguém pode. Porém, melhor que o Che, sim. Che é um igual a mim e a você, com a diferença de que foi muito melhor que nós como seres humanos. Por quê? Porque se propôs a isso, porque se dedicou a isso. Então, custa trabalho. Digo, honestamente, que é possível ser melhor do que ele, só basta querer, só basta tentar. Eu acho isso muito importante. Meu irmão Camilo, certa vez na Itália, meio em tom de brincadeira, disse: “Se quiserem canonizar meu pai, tudo bem, mas não esqueçam nunca de deixar um espaço nas costas para a mochila, com suas armas e suas balas. E não esqueçam também que o seu Inri era Inra: Instituto de Reforma Agrária”.

Moema Paiva Pereira - Como você recebeu a notícia da reeleição de Bush?
Com muita tristeza, sobretudo pelo povo estadunidense. É uma grande pena que eles não tenham podido eleger o outro candidato, mesmo sabendo que o outro também não era muito bom. Os pobrezinhos não tinham muita escolha. Mas, de todas as maneiras, penso que é penoso para eles ter homens e mulheres morrendo numa guerra desnecessária, cruel, injusta, sem nenhum objetivo real, nada mais que a riqueza econômica. Isso não é motivo para sacrificar vidas. Sinto pena do povo dos Estados Unidos que terá que viver mais quatro anos nessa loucura e com problemas econômicos. Veja, são mais de 44 milhões de pessoas sem seguridade médica, perdendo seguridade social, perdendo dignidade como povo. E me dá pena pelo resto do mundo, porque não sabemos o que nos espera nestes quatro anos. Vamos ver o que lhe diz Deus no ouvido, porque esse tipo fala com Deus. Precisamos saber o que ele acha que Deus vai dizer no ouvido dele e ver o que ele vai fazer. Me disseram que uma jornalista brasileira comentou o seguinte: “Já que os Estados Unidos têm tanto poder em todas as partes do mundo, o mínimo que poderiam fazer era pedir os votos internacionais para escolher o seu presidente”. Eu concordo com ela totalmente.

Elis Motta - Como é receber o carinho do povo cubano, e latino-americano, pelo reconhecimento de ser filha do Che?
Em geral, a relação se inicia através dele, não através da minha pessoa. Tem de ter consciência de que isso vai acontecer. Sempre digo que sou um acidente genético. Nasci filha desse homem, mas poderia ter sido você, poderia ter sido qualquer um. O fato de o pai ter sido um homem muito especial não determina a vida de uma pessoa. O que determina a vida de uma pessoa é que ela seja útil socialmente. Tem uma história muita linda que aconteceu comigo no hospital. Estou atendendo uma criança e na receita que passo tem meu nome e sobrenome. Então, o menino sai da sala e a mãe dele vê a receita e diz: “Essa mulher é filha do Che”. Aí a criança volta e me pergunta: “É verdade mesmo que você é a filha do Che?” Era uma criança de 7 anos. Eu digo que sim, que sou uma das filhas do Che. E ele fala: “Ah, por isso você é assim tão boa”. É fantástico. Você fica seis anos fazendo faculdade, passa a vida inteira estudando medicina para poder ser útil como médico e, se você é boa, é porque é filha do Che. Mas, ao mesmo tempo, há uma outra leitura: um menino de apenas 7 anos identificou que esse homem é bom, e que você tem de ser boa porque é filha dele, não há outra alternativa. É uma leitura muito bonita.

Ricardo Viel - Essas coisas acontecem muito com você?
Comigo aconteceram coisas muito lindas. Um dia estava no hospital e fui atender um menino com amigdalite, o menino tinha 13 anos mas já era um negro grande, e eu tinha de lhe dar uma injeção e ele dizia que não, não e não. Até que o convenci a tomar uma injeção na bunda e falei para a mãe dele: “Coloca ele sobre suas pernas que eu dou a injeção”. Eu estava usando uma camiseta com a imagem do meu pai e, quando preparava a seringa para injetar no menino, a mãe dele levanta a cabeça, me olha, olha a camiseta e pergunta: “Você é filha do Che?” Digo que sim, já dando a injeção. Nesse instante a mulher se joga sobre mim e me abraça, comovida, esquecendo completamente do menino, e eu tentando terminar de dar a injeção. São muitas histórias. Uma vez, eu estava no ônibus e chegou a parada onde eu deveria descer, e uma senhora que estava na minha frente, com aquele carrinho onde as pessoas colocam as coisas, não percebe e me dá uma tremenda pancada na canela que me deixou dobrada de dor. Aí veio outra senhora e disse: “Ela não percebeu que te machucou, que barbaridade, pode deixar que eu te ajudo”. E foi me acompanhando, eu me escorando nela, mancando, até chegar em casa. Eu era bem nova, estava começando a fazer medicina. Então, a mulher perguntou se eu precisava de mais ajuda e eu: “Não, muito obrigada, eu vivo aqui nesta casa”. Pronto. Ela ficou perplexa, olhava para mim, olhava para a casa, até que me perguntou: “Você é filha do Che?” Ela sabia que ali era a casa onde Che tinha vivido. Aí começou a chorar e diz: “Meu sonho sempre foi abraçar o seu pai e nunca pude, posso te dar um abraço?” Aí eu digo: “Sou eu que tenho que te abraçar por ter sido tão generosa comigo, sem saber quem eu era, simplesmente como alguém desse povo”. Essas coisas acontecem todos os dias em Cuba.

Fernando Evangelista - Você veio ao Brasil para participar de um evento organizado pelo MST, não é?
Deixei as férias das minhas filhas e as minhas para participar desse congresso organizado pelo MST. Só por eles faço isso. Só pelo MST. Penso que é um dos movimentos mais importantes da América Latina. O objetivo é muito justo, lutam por um pedaço de terra para cultivá-la, para dar alimento aos filhos. O melhor cristão desta terra não pode deixar de reconhecer que esse Movimento tem valor e é necessário apoiá-lo. Nesse sentido, o MST pode ser uma via para o resto da América Latina, recuperar o que realmente é de todos nós. E tratar de produzir nessas terras, em que alguns se dizem donos sem utilizá-las e, portanto, não são donos. Se existe um dono, é quem a faz produtiva. Se é que existe um dono, porque a terra é propriedade de todos nós. Quem disse que um pedaço de terra é seu ou meu? Não há lei que possa sustentar isso. A terra é de quem nela produz e a faz produtiva em benefício dos demais. Isso temos de aprender e levar a cabo. Então, o MST é um movimento que serve para unificar o continente, rompendo fronteiras, porque está fazendo algo necessário para todo o nosso continente. Pode ser um caminho para que possamos unir, realmente, os nossos povos, buscando um mundo melhor, mais justo. Por isso, cada vez que possa apoiá-lo em qualquer parte eu o faço, com muito gosto.

Ricardo Viel - Essa militância é muito importante e muito bonita, mas às vezes não bate um desânimo?
Temos de levar a cabo o que pensamos e ser conseqüentes com o que sentimos. Desde muito jovem aprendi que temos de viver de tal forma que ao morrer não sintamos dor pelos anos passados em vão. Alguém disse que quando você aprende a viver já está morrendo. A vida é muito curta, e temos de aproveitá-la. Penso que ganhei muito com esse trabalho de solidariedade em muitas partes do mundo, porque conheci homens e mulheres excepcionais, gente com valor, com força, com dignidade, com honestidade. Vale a pena, então, apoiá-los, lutar junto deles em qualquer parte do mundo. Essas são as coisas que te fazem crescer e se sentir melhor como pessoa. Os nossos cinco heróis presos nos Estados Unidos. Um deles, sobretudo René (René González Sehwerert) –me correspondo mais com Antonio (Antonio Guerrero Rodríguez), que é o poeta e pintor – mas fiz várias atividades com a filha de René, depois com seu irmão e sua mãe, estive com a família inteira. Estive também com sua mulher e sua outra filha. Viajei várias vezes com elas, porque estou muito implicada na luta para resgatá-lo, para demonstrar as injustiças e violações cometidas nesses julgamentos. Quando falo com René ou lhe escrevo, sempre lhe agradeço. Ele dedicou a melhor parte da vida defendendo o meu povo. Para que não se cometam mais crimes como o de Barbados, por exemplo, quando explodiram um avião nosso em pleno vôo. Um homem que teve de conviver com a escória humana e manteve sua honestidade, sua hombridade, sua coisa linda como ser humano. E lhe agradecerei eternamente, porque dedicou o melhor da sua vida a nos salvar, a nos proteger. E ele me fala: “Você não tem de me agradecer nada, senão passaremos a vida toda nos agradecendo. Eu também tenho de lhe agradecer por trabalhar por mim. Por manter o país, por ser digna de seu povo. Todas essas coisas eu também teria de lhe agradecer”. Então eu disse: “Chega de agradecer. Mas tenho de reconhecer que te amo”. Isso é assim. Me parece muito lindo ter contato com eles, conviver com heróis – porque são heróis. Me No México trabalhei duro, estive catorze dias, visitei três Estados, falando como um papagaio, como agora, falando sobre os cinco o tempo todo. A verdade é que terminei esgotada. Minha filha menor, meio que reclamando, disse: “Esses são seus filhos, então”. Eu disse: “Não, não. Esses são meus irmãos. Você é minha filha, mas eu te eduquei no conceito da solidariedade. O mínimo que você pode fazer é permitir que sua mãe não esteja a seu lado, ainda que você necessite, porque está trabalhando pela liberdade de cinco homens que permitiram que você hoje viva tranqüilamente no seu país”. Ao final, ela reconheceu. É assim todos os dias, educar é uma das coisas mais difíceis que existem.

Gabriela Tlaija - Você gostou das biografias que saíram sobre o Che em 1997, quando se completaram os trinta anos de sua morte?
Nenhuma é boa. Todas têm defeitos graves. Todas têm sérios problemas. Talvez se possa ler um pouco a do Paco Ignacio Taibo II e umas partes do Jon Lee Anderson, mas acho que não são boas para conhecer o Che. Não são capazes. Penso que os livros mais importantes para conhecer o Che são os livros que ele mesmo escreveu. Meu pai tinha o hábito de escrever muito, desde os 17 anos de idade. E, a partir dessa época, já há documentos escritos por ele que estamos publicando. Quase tudo o que ele escreveu está publicado.

Fernando Evangelista - Para encerrar, de onde vem essa extraordinária capacidade do Che de seguir renascendo?
Minha mãe um dia disse: “O Che rompeu suas próprias fronteiras”. É verdade, se converteu num personagem digno de ser imitado por qualquer cultura, porque ele tem valores que podem ser reconhecidos por qualquer um, em qualquer parte do mundo. Quais valores? Honestidade, força, amor, ternura. São qualidades que muito poucas vezes você vê unificadas em uma só pessoa. Isso chama a atenção. E hoje em dia, com toda essa situação que estamos vivendo, com a falta de valores, falta de pureza na vida, encontrar um personagem assim deve ser, para as pessoas, como encontrar uma bóia no meio do oceano, você se agarra nela para não afundar. Porque, se esse homem pôde, você também pode. São essas coisas que fazem com que até os japoneses gostem do meu pai, ou os árabes ou os indianos, culturas tão distantes da nossa. Acho que a capacidade de seguir renascendo tem a ver com isso, tem a ver com a dignidade desse homem, com a capacidade de amar que tinha como ser humano, e com sua entrega total ao que acreditava ser justo.

Esta entrevista foi publicada, originalmente, na revista Caros Amigos de fevereiro de 2005

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lunes, 18 de febrero de 2008

Teatro do oprimido

Manifesto da Associação Internacional do Teatro do Oprimido (AITO), retirado do site O Palco

Declaração de princípios Preâmbulo

1. O objetivo básico do Teatro do Oprimido é o de Humanizar a Humanidade.

2. O Teatro do Oprimido é um sistema de Exercícios, Jogos e Técnicas Especiais baseadas no Teatro Essencial, que busca ajudar homens e mulheres a desenvolverem o que já trazem em si mesmos: o teatro.

O Teatro Essencial

3. Todo ser humano é teatro! 4. O teatro se define pela existência simultânea — dentro do mesmo espaço e no mesmo contexto — de espectadores e atores. Todo ser humano é capaz de ver a situação e de ver-se, a si mesmo, em situação.

5. O Teatro Essencial consiste em três elementos principais: Teatro Subjetivo, Teatro Objetivo e Linguagem Teatral.

6. Todo ser humano é capaz de atuar: para que sobreviva, deve produzir ações e observar o efeito de suas ações sobre o meio exterior. Ser humano é ser teatro: ator e espectador co-existem no mesmo indivíduo. Esta co-existência é o Teatro Subjetivo.

7. Quando um ser humano se limita a observar uma coisa, pessoa ou espaço, renunciando momentaneamente à sua capacidade e à sua necessidade de produzir ações, a energia e o seu desejo de agir são transferidos para essa coisa, pessoa ou espaço, criando, assim, um espaço dentro do espaço: o Espaço Estético. Este é o Teatro Objetivo.

8. Todos os seres humanos utilizam, na vida diária, a mesma linguagem que os atores usam no palco: suas vozes e seus corpos, movimentos e expressões físicas. Traduzem suas emoções, desejos e idéias em uma Linguagem Teatral. Teatro do Oprimido.

9. O Teatro do Oprimido oferece aos cidadãos os meios estéticos de analisarem seu passado, no contexto do presente, para que possam inventar seu futuro, ao invés de esperar por ele. O Teatro do Oprimido ajuda os seres humanos a recuperarem uma linguagem artística que já possuem, e a aprender a viver em sociedade através do jogo teatral. Aprendemos a sentir, sentindo; a pensar, pensando; a agir, agindo. Teatro do Oprimido é um ensaio para a realidade.

10. Oprimidos são aqueles indivíduos ou grupos que são, social, cultural, política, econômica, racial ou sexualmente despossuídos do seu direito ao Diálogo ou, de qualquer forma, diminuídos no exercício desse direito.

11. Diálogo é definido como o livre intercâmbio com os Outros, individual ou coletivamente; como a livre participação na sociedade humana entre iguais; e pelo respeito às diferenças e pelo direito de ser respeitado.

12. O Teatro do Oprimido se baseia no Princípio de que todas as relações humanas deveriam ser de natureza dialógica: entre homens e mulheres, raças, famílias, grupos e nações, sempre o diálogo deveria prevalecer. Na realidade, os diálogos têm a tendência a se transformarem em monólogos que terminam por criarem a relação Opressores-Oprimidos. Reconhecendo esta realidade, o princípio fundamental do Teatro do Oprimido é o de ajudar e promover a restauração do Diálogo entre os seres humanos.

Princípios e Objetivos

13. O Teatro do Oprimido é um movimento estético mundial, não-violento, que busca a paz, mas não a passividade. 14. O Teatro do Oprimido procura ativar os cidadãos na tarefa humanística expressa pelo seu próprio nome: teatro do, por e para o oprimido. Nele, os cidadãos agem na ficção do teatro para se tornarem, depois, protagonistas de suas próprias vidas.

15. O Teatro do Oprimido não é uma ideologia nem um partido político, não é dogmático nem coercitivo, e respeita todas as culturas. É um método de análise, e um meio de tornar as pessoas mais felizes. Por causa da sua natureza humanística e democrática, o TO está sendo amplamente usado em todo o mundo, em todos os campos da atividade social como, por exemplo, na educação, cultura, artes, política, trabalho social, psicoterapias, programas de alfabetização e na saúde. No Anexo desta Declaração de Princípios, alguns projetos exemplares são apresentados para ilustrar a natureza e o escopo deste Método teatral.

16. O Teatro do Oprimido está sendo usado em dezenas de países de todo o mundo, aqui relacionados em Anexos, como um instrumento poderoso para a descoberta de si mesmo e do Outro; para clarificar e expressar os desejos dos seus praticantes; como instrumento para modificar as causas que produzem infelicidade e dor; para desenvolver todas aquelas características que trazem a Paz; para respeitar as diferenças entre indivíduos e grupos; para a inclusão de todos os seres humanos no Diálogo necessário a uma sociedade harmoniosa; finalmente, também está sendo usado como instrumento para a obtenção da justiça econômica e social, que é o fundamento da verdadeira Democracia. Em resumo, o objetivo mais geral do Teatro do Oprimido é o desenvolvimento dos Direitos Humanos essenciais.

A ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DO TEATRO DO OPRIMIDO (AITO)

17. A AITO é uma organização que coordena e promove o desenvolvimento do Teatro do Oprimido em todo o mundo, de acordo com os princípios e os objetivos desta Declaração.

18. A AITO cumpre este objetivo inter-relacionando os praticantes do Teatro do Oprimido em uma rede mundial, promovendo a troca entre eles, e o seu desenvolvimento metodológico; facilitando o treinamento e a multiplicação das técnicas existentes; concebendo e executando projetos em escala mundial; estimulando a criação local de Centros do Teatro do Oprimido (CTOs); promovendo e criando condições de trabalho para os CTOs e os seus praticantes, e criando um ponto de encontro internacional na Internet.

19. A AITO tem os mesmos princípios e objetivos humanísticos e democráticos do Teatro do Oprimido, e vai incorporar todas as contribuições de todos aqueles que trabalharem dentro desta Declaração de Princípios.

20. A AITO entende que todos aqueles que trabalham usando as várias técnicas do Teatro do Oprimido, subscrevem esta mesma Declaração de Princípios.

QUAL O PAPEL DA UNIVERSIDADE?

Universidade, conhecimento e opinião
Marco Aurélio Nogueira Especial para
*Gramsci e o Brasil*






A universidade existe para produzir conhecimento, gerar pensamento crítico, organizar e articular os saberes, formar cidadãos, profissionais e lideranças intelectuais. O desempenho dessas nobres e decisivas funções, porém, não é algo que se resolva no plano abstrato. Do mesmo modo que as demais instituições, a universidade está sempre historicamente determinada. Pode funcionar bem ou mal, cumprir com maior ou menor efetividade suas atribuições, ser mais ou menos admirada e respeitada. Ela não é perfeita nem inquestionável. Não está acima da sociedade nem desconectada dela. As próprias circunstâncias internas da instituição - seu corpo docente, sua estrutura administrativa, seus dirigentes, estatutos e tradições - incidem sobre sua imagem e seu desempenho. Em certa medida, cada época, cada sociedade e cada Estado têm a universidade que podem ter, por mais que a instituição universitária, por sua própria natureza, tenha luz própria e possa, justamente por isso, operar com alguma liberdade em relação às circunstâncias histórico-sociais que lhe estão na base. Não se trata de dependência ou limitação, mas de determinação.
Nos últimos anos, a universidade brasileira tem se debatido intensamente numa crise que não parece ter data para terminar e que, dentre outras coisas, pode ser responsabilizada pelo estado de exasperação, insatisfação, “desconstrução” e experimentalismo que se instalou nos circuitos acadêmicos. Trata-se de uma crise que tumultua e desorganiza, mas que também se abre para novos horizontes e possibilidades, na medida mesma em que se mostra essencialmente como desafio e põe por terra hábitos e procedimentos pouco funcionais ou referidos rigidamente a padrões anteriores de vida intelectual, educação e gestão.
A crise se instalou no cotidiano da instituição universitária e está revirando seus fundamentos organizacionais, pedagógicos, culturais. Confunde-se com uma mudança paradigmática nas formas de explicação do mundo, nos hábitos e comportamentos intelectuais, no modo de trabalhar e conceber o trabalho, nos modelos seguidos para organizar atividades técnicas, administrativas e educacionais. Associa-se à reestruturação produtiva em curso, à globalização capitalista, à informacionalização, ao modo como se passou a viver a vida, fatores e processos estes que estão modificando profundamente as sociedades contemporâneas, seus valores e suas instituições. Além disso, repercute os procedimentos que têm sido adotados pelos governos no campo da reforma do Estado, que seguem um sentido perigosamente hostil à comunidade política e à vida pública, ao mesmo tempo em que cortejam perigosamente o mercado.
Neste quadro, será que a universidade continua sendo capaz de desempenhar suas históricas atribuições? Que conhecimento ela está gerando hoje? Como as opiniões geradas em seu interior entram em circulação, que função cumprem? Qual sua efetiva contribuição para o país? São muitas as interrogações. As universidades (as públicas, sobretudo) continuam a ser essenciais na vida nacional, mas não temos como fugir ao reconhecimento de que há algo estranho nesse contexto, algo que rouba protagonismo da própria instituição universitária e a expõe a uma saraivada de críticas recorrentes.
Edificada no decorrer de uma longa evolução histórica, cujos primórdios remontam à Idade Média, a universidade se consolidou como um agregado de pessoas possuidoras de certas qualidades e unidas pela “missão” de produzir e transmitir conhecimento, acumular e disseminar pensamento crítico, formar outras pessoas, jovens sobretudo, como cidadãos, profissionais e lideranças intelectuais. Trata-se de uma instituição eminentemente social, cuja razão de ser é publicamente reconhecida e legitimada, na medida mesma em que se reporta o tempo todo à sociedade e ao Estado, à cultura, à política e à economia. De certa maneira, a universidade recebe uma “delegação” da sociedade, que transfere a ela determinadas responsabilidades e incumbências. Tudo o que é humano lhe interessa e diz respeito, tudo o que há de mais típico nas épocas históricas e nas estruturas sociais reverbera em seu interior, dando a ela uma existência dinâmica e socialmente referenciada. Seus movimentos como instituição seguem as demandas e expectativas da sociedade, ainda que não se submetam passivamente a elas.
Sustentada pelos princípios da autonomia do saber, da liberdade de expressão e da reflexão desinteressada, que só obedece a si própria, a universidade é uma instituição que se põe, diante do mundo, como sujeito simultaneamente ativo e reativo. Absorve demandas e expectativas sociais variadas, às quais precisa responder, mas ao mesmo tempo age para propor pautas e agendas, contribuir para a construção da autoconsciência social, alargar fronteiras culturais e submeter à crítica a realidade, as estruturas sociais e as relações de dominação. Exatamente por isto, funciona tanto melhor quanto mais republicana (pública e laica) e democrática for, e quanto mais republicano e democrático for o Estado com o qual se relaciona.
Além do mais, a universidade é uma decisiva referência do Estado (comunidade política) e vincula-se ao Estado (aparato administrativo e de governo). No primeiro caso, recebe uma atribuição ética, educacional e política; no segundo, muitas incumbências e algumas restrições. Precisa ser livre, laica e autônoma para respirar e cumprir seu papel, ao mesmo tempo em que tem de se viabilizar como organização, ou seja, cuidar de si própria, administrando corretamente os recursos de que dispõe ou que recebe do poder público. Com isto, obriga-se a obedecer a determinados parâmetros legais, seguir diretrizes gerais de educação e acompanhar orientações governamentais, bem como a reproduzir determinadas exigências técnicas e operacionais, comuns a todas as organizações complexas.
Inevitável, portanto, que a universidade reflita em si, com uma dose adicional de dramaticidade, todas as características, vantagens e adversidades da época histórica e das sociedades concretas em que está inserida. Tanto quanto as demais organizações, ela está hoje em ebulição, num momento de transição e arrumação, no qual as partes se unem com dificuldade, concebem-se a si mesmas com bastante imprecisão e vivem à procura de uma nova e melhor inserção social. Similarmente às demais organizações, a universidade flutua em um estado de sofrimento, que seguramente não a inviabiliza, mas que a desafia abertamente.


Universidade e conhecimento


Como instituição que se dedica à produção e transmissão de conhecimento, a universidade não tem como deixar de ser afetada pelo modo como as épocas históricas e as sociedades entendem o conhecimento. Por estar sempre socialmente referenciada, a idéia de conhecimento oscila conforme os movimentos da história, a correlação de forças, as disputas de hegemonia e dominação. É ele um valor em si, voltado para o crescimento intelectual e moral das pessoas, ou um recurso para que as pessoas se adaptem melhor ao mundo? O conhecimento pode ser pensado como um fim em si mesmo, que liberta, promove e emancipa, ou como um instrumento de desenvolvimento profissional e ajuste, com o qual as pessoas melhoram sua posição relativa diante do mercado de trabalho, por exemplo. Ambas as visões evidentemente coexistem, mas as sociedades - quer dizer, as estruturas sociais, as relações de dominação, as forças e correntes que prevalecem nos diversos momentos de sua história - têm suas “preferências” e fazem “escolhas”. A maior adesão social a uma ou outra daquelas visões certamente não é sem importância.
Hoje, em ritmo de globalização capitalista e informacionalização, o conhecimento também se tornou um bem de mercado: pode e deve ser “comprado” para que seja possível, às pessoas, uma melhor adaptação ao mundo. O conhecimento virou uma mercadoria e passou a integrar o mesmo circuito de produção e circulação de mercadorias. Com isto, tudo aquilo que, na universidade, existe para produzir e transmitir conhecimento sofre uma drástica alteração: aulas, pesquisas, relações entre alunos e professores, teses e monografias, adquirem novos sentidos e significados. A produção se torna mais importante do que a transmissão, o acúmulo de informações ganha destaque diante da reflexão, os resultados passam a ser mensurados com obsessão e segundo critérios estranhos à própria lógica do conhecimento, os relacionamentos são formatados para gerar respostas no curto prazo, não para promover efetivos intercâmbios intelectuais, o quanto se faz fica mais relevante do que o como se faz e o porquê se faz. Instala-se um quadro sustentado pelo cálculo, pelo custo-benefício, por uma racionalidade “irracional”, pouco compatível com a razão crítica que alimenta a ciência.
O estreitamento das relações entre universidade e mercado afeta a finalidade mesma da universidade, o modo como ela se concebe e o lugar que nela tem a idéia de ciência e formação. Fazer ciência, hoje, muitas vezes se reduz a uma prática instrumental, pragmática, vazia de aventura, risco e fantasia. Formar deixa de ser um processo de preparação para a vida, de articulação e totalização dos saberes, de diálogo com a história, e se converte numa operação de curto prazo destinada a instrumentalizar pessoas para uma melhor inserção no mercado de trabalho ou para um mais adequado aproveitamento das “oportunidades”. A formação e a ciência perdem contato com a dúvida, a reflexão sistemática, a curiosidade, o questionamento, em nome da aquisição de “certezas”, da necessidade de dominar tecnicamente determinados temas ou situações, do privilegiamento de carreiras e salários. No fundo, há mais capacitação que formação. Em decorrência, mudam as bases do ensino e da pesquisa, com a fragmentação dos currículos, o aumento da carga letiva, a aceleração dos ciclos de estudo, o privilegiamento da quantidade (disciplinas, matérias, informações, horas-aula, vagas, carga horária docente, artigos publicados, teses defendidas) sobre a qualidade, a valorização unilateral do pesquisador em detrimento do professor.
Com isto, também é afetada a idéia mesma de liberdade acadêmica, com seus requisitos: uma rede de proteções e garantias para o exercício da crítica, uma específica estabilidade que se vincula à dedicação integral ao ensino e à pesquisa, uma certa “irresponsabilidade” docente. É igualmente afetado o instituto da autonomia universitária, seja em termos acadêmicos (com a “imposição” de escolhas curriculares e preferências teóricas por parte do “mercado de trabalho”), seja em termos orçamentários e financeiros, seja em termos gerenciais. A idéia mesma de autonomia sofre uma redução, chegando a ser simplificada e banalizada. Tende-se sempre a maximizar o aspecto financeiro da questão, como se a liberdade para gerir recursos financeiros esgotasse o tema da autonomia ou fosse o aspecto mais importante dele.
A organização universitária é obrigada a se reformular como um todo. Passa a se estruturar a partir de uma nova idéia de tempo, por índices de produtividade, pela busca obstinada de eficácia administrativa, racionalidade gerencial e controle do gasto. É fácil perceber como tudo isto entra em atrito com a missão histórica da universidade e trava a reprodução de suas atribuições básicas: gerar reflexão crítica, criar condições para a formação e o enriquecimento intelectual de seus integrantes, produzir conhecimento. Arma-se um conflito de tempos, lógicas, valores. O próprio protagonista central da experiência universitária, o intelectual, muda de função. Fica recoberto por uma nova auréola de inacessibilidade e “superioridade”, pois se torna autocentrado e auto-referenciado. Busca o máximo de projeção na cena pública, mas não para cumprir uma função pública - a de interpelar a comunidade e contribuir para a formação de uma opinião democrática -, mas sim para vender a imagem da sua especialidade, da sua “corporação”. Torna-se um técnico.
Com a prevalência do conhecimento-mercadoria e da informação sobre o conhecimento profundo e o pensamento crítico, a universidade regride como instituição dedicada ao saber desinteressado e à interferência ativa nos destinos da sociedade. Sua opinião perde força e valor, diluindo-se na vala comum das opiniões em geral.
A universidade pública encontra-se na berlinda. É criticada por todos os lados e parece estar sendo abandonada pela sociedade, que, instigada por uma visão instrumental da formação superior (que deveria apenas preparar os jovens para o mercado), tende a olhar sempre com maior desconfiança para a universidade pública, onde haveria funcionários demais, ociosidade demais, “filosofia” demais. Chega-se mesmo a pensar que a época do ensino superior público já teria passado, engolida por sua incapacidade crônica de se adaptar aos novos contextos, aumentar a produtividade e a eficiência e formar profissionais com o perfil requerido. Ao longo dos anos 1990, tornou-se rotineira a acusação governamental (proveniente quase sempre da chamada área econômica) de que o ensino superior público consome uma exagerada parcela do orçamento da educação, impossibilitando um melhor atendimento aos demais estágios educacionais. Entrou-se no novo século com um governo de esquerda, eleito em 2002, mas a rotina permaneceu intocada. A universidade pública continua a ser condenada por servir apenas a uma pequena porcentagem de “ricos”. O caminho ficou aberto, assim, no discurso governamental, para a redução dos investimentos estatais no ensino superior e, no limite, para a privatização declarada ou dissimulada da universidade pública. Deu-se um descolamento, um desencontro entre o Estado e a universidade, como se esta já não mais integrasse o núcleo estratégico de reprodução da comunidade política e devesse ser reduzida à condição de uma organização como outra qualquer. Tanto quanto as demais organizações, a universidade pública também precisaria se viabilizar no mercado. Neste ponto, a educação superior deixa de ser um direito do cidadão e se converte em um “bem” a ser adquirido.
É preciso desmontar este sistema e este modo de pensar. Não dá mais para continuar falando de universidade em termos contábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um supermercado ou uma fábrica. Além de fazer a defesa intransigente da sua natureza pública, laica e republicana, demarcando com clareza seu lugar no Estado e, portanto, suas relações com o mercado, é preciso fazer a crítica da universidade realmente existente, que é, em boa medida, a resultante tanto das políticas governamentais quanto do modo como seus integrantes assimilam os processos que estão a desafiar a instituição universitária. Devemos, decididamente, complicar o argumento.


Para sair da crise


A universidade pública, de ensino e pesquisa, laica e republicana, encontra-se em estado de sofrimento, mas seguramente está muito longe de estar em agonia. Por mais que seja insidiosa e contundente a campanha que contra ela fazem alguns setores governamentais e certos formadores de opinião, ela resiste em muito boas condições, continua cumprindo um papel de destaque e se mantém como o principal centro de reflexão da sociedade brasileira, como de resto acontece em todos os países, em maior ou menor grau. A universidade tem reservas poderosas. Seus “recursos humanos” - estudantes, professores, funcionários - mexem acima de tudo com idéias, materiais em si mesmos explosivos, criativos e reflexivos. É um espaço categoricamente dialógico e pode, por isso mesmo, olhar nos olhos da crise, interpelá-la e reinventar a si própria como práxis e instituição.
Mas é evidente que não passa imune por esta campanha, nem deixa de se ressentir das fortes mudanças que ocorrem no meio ambiente em que vive. A universidade precisa, portanto, concentrar energias em sua própria realidade, no seu modus vivendi e operandi. Fazer sua autocrítica, digamos assim.
Para recuperar a centralidade como instituição social dedicada à formação e ao conhecimento, qualificada como opinião e preparada para projetar futuros, a universidade precisa rever algumas de suas práticas atuais e muitos dos procedimentos que tipificam seu cotidiano. Precisa se reorganizar, ter coragem para se passar a limpo e se renovar.
(1) Antes de tudo, precisa valorizar com radicalidade a sua autonomia, recuperando (ou conquistando) o poder de decidir o fundamental, quer dizer, seu modo de funcionamento, não tanto no plano administrativo-financeiro mas sobretudo no plano propriamente acadêmico. Isto significa, antes de tudo, rebelar-se contra a tirania da produtividade, dos critérios quantitativos, dos prazos curtos definidos por agências que são externas a ela, ainda que estejam sob controle da “comunidade acadêmica”. Significa também, por extensão, dar novo sentido e significado à idéia de formação e conhecimento, revendo seus currículos, sua sistemática didático-pedagógica e seus planos de estudo. Autonomia está associada evidentemente a liberdade de fazer opções, gerir recursos e tomar decisões, mas se identifica também com capacidade de traduzir as condições externas (gerais) em princípios de organização e atuação. Uma universidade é autônoma não quando se descola do Estado ou da sociedade, mas quando incorpora a si - como questões suas - as demandas, expectativas e pressões do Estado e da sociedade, sem ser tolhida por elas mas, ao contrário, sabendo respondê-las com independência, desprendimento e responsabilidade, valendo-se delas para se afirmar como instituição. Não se trata nem de auto-suficiência, nem de fechamento, mas de uma radical e específica forma de se abrir para o exterior.
(2) É indispensável, também, que ensino e pesquisa sejam postos em relação de equivalência e complementaridade efetiva. Não há porque privilegiar unilateralmente a pesquisa, como se ela pudesse frutificar fechada em si mesma e fora das salas de aula. Não faz sentido enfatizar a pesquisa como porta de entrada no mundo da captação de recursos, até porque isto violenta a própria natureza da investigação científica. Uma instituição universitária que banaliza o ensino não progride como espaço de formação. Ensino e pesquisa são atividades fundamentais e devem integrar, em igualdade de condições e mediante articulações de reciprocidade e troca contínua, a estrutura e a cultura de todas as instituições acadêmicas, não apenas das “melhores”. Separações entre escolas de pesquisa e escolas de ensino, ou entre professores que pesquisam e professores que ensinam - ou, como se faz corriqueiramente hoje, entre professores da graduação e professores da pós-graduação -, não são apenas prova de elitismo vulgar. São um contra-senso, uma demonstração de cegueira e alienação.
(3) Até porque é daí que vem sua maior fonte de legitimação, a universidade precisa dialogar de modo inteligente com a sociedade. Deve “ir onde o povo está”, isto é, buscar a sociedade, pôr-se em contato ativo e regular com ela, torná-la protagonista da própria dinâmica universitária. Romper com toda e qualquer tentação paternalista. Continua intocável a missão a que se arvorou a universidade, qual seja, a de colaborar dedicadamente para que a sociedade se explique a si mesma, elabore e desenvolva sua autoconsciência, conheça-se melhor e construa uma imagem de si. Permanece estratégica a sua contribuição para que se organizem as agendas nacionais, para que se defina o que precisa ser feito para que as pessoas (grupos, comunidades) vivam de modo justo e civilizado, inserindo-se com soberania e dignidade no mundo. Do mesmo modo, a universidade está chamada a interpelar todo o universo da educação, articulando-se de modo ativo com os demais níveis de ensino, para assim compartilhar experiências e, sobretudo, promover o constante encontro do conjunto da sociedade com o que a humanidade produz de grandioso e relevante nos mais diversos campos da ciência e da arte.
(4) Em quarto lugar, a universidade terá de levar mais a sério o desafio da sua democratização: ir além do refrão “mais vagas” e “mais participação”. Democratizar não pode significar apenas ter acesso facilitado, representação paritária e eleições diretas para os cargos de direção, por mais que isto seja relevante e indispensável para a dinamização dos ambientes universitários. Antes de tudo, tais procedimentos não revitalizam a gestão propriamente dita, nem melhoram necessariamente a qualidade das decisões, podendo-se até mesmo dizer que a concentração de energias na dimensão mais simbólica e aparencial da democracia produz maior lentidão e menor rigor nos próprios processos decisórios, que se esvaziam de critérios de mérito (acadêmico, inclusive) e se congestionam de pressões e postulações eminentemente corporativas. A democratização só fará sentido se souber rever seus próprios passos, respeitar a especificidade e a finalidade da instituição, e se traduzir em termos substantivos, quer dizer, em termos de democratização do conhecimento. Democratizar precisa significar, também, criação das condições institucionais e comportamentais (didático-pedagógicas) necessárias para uma formação de massas igualitária, baseada numa igualação categórica das oportunidades, de modo a propiciar a todos (e não apenas aos “mais capacitados”) as mesmas condições de progressão intelectual, acesso a conhecimentos e interação acadêmica.
(5) Será preciso encontrar um eixo para assimilar a massificação, equilibrando quantidade e qualidade. Forçada a se converter em fenômeno de massa, a universidade ainda não conseguiu se ajustar inteiramente a isso. Perdeu a condição de abrigo da “cultura superior”, sendo levada a ter de disputar espaço com a sociedade e a cultura de massas. Respondeu a isto com a sua própria expansão. Cresceram, assim, tanto o número de estudantes quanto o de professores e servidores administrativos, “deselitizando” parcialmente a universidade, forçando-a a operar em outra escala de tempo e a partir de novos procedimentos organizacionais e didático-pedagógicos. O ensino e a produção de conhecimentos viram-se então alterados, na medida em que tiveram de responder a novas demandas e exigências, a abrir-se para universos mais instrumentais e aplicados, e com isso a se simplificar. Agora, a universidade (a pública, sobretudo) não tem como deixar de continuar crescendo para absorver as massas de jovens que batem às suas portas. Terá de abrir mais vagas e mais cursos, oferecer mais aulas e serviços de extensão, diversificar sua oferta. Mas não terá sucesso nesta operação e se descaracterizará se abrir mão de princípios consolidados, se postergar a qualidade para um ponto futuro não determinado, se optar por se mexer sem cessar apenas para não ficar parada.
(6) Por fim, para resumir todos estes pontos, creio ser possível dizer que a universidade superará sua crise tanto mais depressa quanto mais depressa assumir a condição de “usina” estratégica de formação de lideranças intelectuais. Os que são por ela formados não podem ser meros “especialistas”, detentores de um saber concentrado em um ou outro ponto especifico. Precisam ter a vocação do universal, da universitas, projetando-se como personagens que reúnem especialização e capacidade de direção, conhecimento especializado e visão ético-política (Gramsci), ciência e cultura. Se optar por privilegiar este enfoque, a universidade terá de encarar seriamente o desafio de rever alguns de seus fundamentos propriamente acadêmicos, científicos e filosóficos, ou seja, aqueles que a distinguem como instituição, idéia e práxis.
Na base deste movimento, deverá estar a prevalência do mérito acadêmico, mas também a proposição consistente de um pacto democrático de convivência, a assimilação de um padrão superior de gestão e o estabelecimento de um diálogo inteligente com a sociedade. Pela via da reposição do mérito, a universidade se reencontrará com seu sentido originário e poderá deslanchar como instituição dedicada à produção e difusão de conhecimentos. Pela via da democracia, terá como construir um pacto que solidarize os interesses, respeite as individualidades e incentive a participação de todos. Renovando a gestão, aprenderá a dar conta das rotinas sem se deixar rotinizar, inventando-se permanentemente como instituição. E, por fim, dialogando de modo inteligente com a sociedade, terá como se conhecer melhor e encontrar incentivos para não se congelar em si mesma, não respirar seu próprio ar, nem olhar apenas para seus interesses.
A universidade é um patrimônio da humanidade. Atacada ou não, em crise ou não, ela existe, e é agora, nesse momento concreto por que passam as sociedades, que precisa mostrar seu valor.


São Paulo/São Vicente, 19 de janeiro de 2004.

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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política na Unesp, Campus de Araraquara, e um dos editores de *Gramsci e o Brasil*. Esta foi a conferência de abertura da Universidade de Verão, promovida pela Universidade Estadual Paulista-Unesp em São Vicente, 19 de janeiro de 2004. Com adaptações, serviu de base para a Aula Inaugural do ano acadêmico de 2004 no Campus Universitário de Rio Claro, da mesma Unesp, ministrada em 3 de março de 2004.

um pouco de gorki

A Mãe - Gorki

“Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir; temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.”

Uma obra literária contextualizada na Rússia do início do século XX, inspirada em manifestações reais do primeiro de maio de 1902 e no julgamento dos seus participantes. A revolução de um povo no seio de uma família, transformando a todos com a consciente participação na luta pelos ideais.
A vida da fábrica, o ar pesado de fumaça, a vida cinza... O homem é o retrato da violência do meio. Trabalha, contrai matrimônio, tem filhos, enterra muitos, bebe, é espancado, espanca e morre. Quando o serralheiro Mikhail Vlassov falece, restam a mãe viúva e o filho. Uma relação quase desconhecida: falavam pouco e quase não se viam.
Um dia após o jantar, a mãe pergunta o que o filho lê e surge o primeiro vínculo entre os dois no segredo compartilhado: “Leio livros proibidos. Os livros são proibidos porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos às escondidas e, se os encontram aqui, metem-me na prisão, porque eu quero saber a verdade.”
Próximos, recomeçam a vida familiar em silêncio. A mãe declara seu medo quando o filho começa a receber visitas e a discutir as leituras e as formas de inserir o conhecimento no meio operário. A mãe permanece à margem, analisa as visitas e o que dizem, afeiçoa-se ao grupo... Mas ainda está muito presa aos preconceitos e às verdades religiosas alicerçados em sua existência.
Os panfletos circulam, exortando os operários a se unirem e lutarem por seus direitos. Existem os novos que se entusiasmam; os que ganham bons salários e levam para a administração as folhas, e a maior parte, alquebrada pelo trabalho e pela indiferença, respondem preguiçosamente: “Nada vai mudar, é mesmo impossível.”
Iniciam as buscas em casa, os boatos, as esperas... O filho sabe que o futuro é a prisão. A mãe ironiza a si própria: “Tive medo... até antes de ter medo.”
O filho é preso com a suspeita de que liderava a circulação dos panfletos subversivos. A mãe, amadurecida e transformada com as leituras às escondidas, engaja-se na luta, trabalhando como vendedora de marmitas na fábrica, e continua a distribuição dos panfletos sob o disfarce. A mulher velha se transforma, passa a ocupar um espaço de funções e percepções no grupo. Não é mais apenas a mãe.
O filho é solto e logo inicia os preparativos para o 1º de maio. A manifestação reúne uma multidão compacta e os líderes estimulam os trabalhadores a aderirem ao levante. “Levanta-te, povo trabalhador! A pé, gente com fome e dor!”
A multidão se dispersa diante da “onda cinzenta de soldados”. Muita violência e a prisão dos líderes, entre eles o filho Pavel, encerram a manifestação.
Com a nova prisão de Pavel e a certeza da condenação, a mãe se muda para a casa de um amigo do filho na cidade, um professor primário, e continua o trabalho de distribuição dos panfletos nas zonas rurais. A realidade dos camponeses e dos operários é demonstrada na alienação e no medo. A mãe já não é a esposa violentada pela vida e a senhora com medo do conhecimento do filho, é uma mulher consciente que já tem argumentos próprios.
“A mãe ouvia-o como um sonho; a sua memória desfilava diante dela a longa série de acontecimentos dos últimos anos e, ao recordá-los, via-se a si própria. Outrora a vida havia-lhe parecido externa, longínqua, feita não se sabe por quem, nem por quê; e eis que agora muita coisa nasce perante os seus olhos com a sua contribuição.”
O julgamento do filho é apenas um jogo de cena. As penas já foram estabelecidas nos gabinetes. A deportação – trabalhos forçados. A mãe leva o discurso proferido pelo filho no julgamento para ser impresso e divulgado na tipografia clandestina. Quando ela, incumbida da distribuição, tenta embarcar com a mala cheia de panfletos, percebe que foi apanhada. Sente dúvidas se deve abandonar a mala, mas logo vem a certeza de que seria abandonar as palavras do filho.
É pega, humilhada e espancada. “Não afogarão a verdade num mar de sangue...”
Muitos são os trechos instigantes do romance:
A elaboração da morte de um camarada: “Que quer isso dizer: ele morreu? A minha estima por Iegor, a minha afeição por ele, pelo camarada, a recordação da obra dos seus pensamentos, essa própria obra? Extinguiram-se os sentimentos que ele fez nascer em mim, apagou-se a imagem que me fez dele, de um homem corajoso, honesto? Será que tudo isto morreu? Para mim, isto não morrerá nunca, sei-o bem. Parece-me que nos apressamos demasiado em dizer de um homem: morreu. ‘Estão mortos os lábios dele, mas as suas palavras vivem e viverão eternamente no coração dos vivos!’”
O relato do homem à beira da morte que afirma que sua vida foi mutilada pelo árduo trabalho na fábrica para o patrão comprar um penico de ouro para uma cantora: “Nesse ouro está a minha força, a minha vida. Foi assim que a perdi, um homem matou-me de trabalho para agradar à amante... Comprou-lhe um penico de ouro com meu sangue.”
A perspectiva do perdão: “Como perdoar a quem se atira contra ti como um animal selvagem, quem não reconhece em ti uma alma viva e esmurra o teu rosto? Impossível perdoar. Não por mim, pois suportaria todos os ultrajes se fosse só eu, mas não quero ceder o mínimo aos que empregam a força, não quero que eles aprendam nas minhas costas a espancar os outros.”
Ou a percepção de que apenas a verdade não basta, é necessário tocar a emoção do trabalhador: “Falas bem, sim, mas não tocas o coração, aí está. É no mais fundo do coração que é preciso acender a centelha. Não cativarás as pessoas pela razão. Este sapato é demasiado fino, demasiado pequeno para o pé delas.”
“A Mãe” foi um romance extremamente importante para a consciência da revolução soviética. Lenine, ao ler a obra de Gorki, comentou: “É um livro necessário. Muitos operários participaram no movimento revolucionário de um modo não consciente, espontâneo, e ler A Mãe ser-lhes-á de grande proveito. É um livro muito oportuno.”
Máximo Gorki (1868 a 1936) participou em lugar destacado da revolução de 1905 e, após o malogro desta, escreveu o romance “A mãe” em 1907. Sua atividade literária sempre foi acompanhada de intensa atuação no campo político. Marxista, filiado ao Partido Social Democracia, criou a revista Znanie (O Conhecimento), destinada a estimular vocações jovens.
A vida do grande escritor russo foi marcada pela miséria e pela violência que traçam seus personagens. Órfão de pai aos seis anos, foi morar com o avô que o forçou a “cair no meio do povo para ganhar a vida”. Autodidata, apaixonou-se pelos livros quando trabalhou como copeiro num barco, aos 12 anos, e o cozinheiro transmitiu seu prazer pela leitura e emprestou os livros de sua pequena biblioteca.
Sua vida abrangeu o fim do czarismo e a consolidação do regime soviético. Assumiu cargos importantes no Governo e teve uma morte misteriosa: faleceu inesperadamente quando estava recolhido no hospital para tratamento médico de rotina. Foi sepultado na Praça Vermelha junto aos líderes da Revolução e consagrado como o patrono das letras soviéticas.
O pseudônimo do escritor – Gorki - foi adotado em recordação aos anos de penúria de sua infância mutilada. Gorki em russo significa “amargo”.

O título e a atuação da protagonista no romance ensejam uma crônica especial sobre o papel das mães na construção da história. As mães da Praça de Maio, as mães dos soldados mortos em combate, as mães dos grandes líderes, as mães dos grandes mártires...



Helena Sut
Publicado no Recanto das Letras em 25/01/2005