sábado, 1 de marzo de 2008

por que abrir os arquivos?

O direito à verdade e os arquivos sigilosos
Marlon Alberto Weichert
“Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.”
Afonso Romano de Sant’ana
O artigo 5º da Constituição Federal incorporou ao rol dos direitos fundamentais o direito à verdade. Primeiro no inciso IX, ao contemplar a liberdade de imprensa (direito de informar), depois no inciso XIV, ao assegurar o direito de buscar informação, e finalmente no inciso XXXIII, que garante ao cidadão e à coletividade serem informados, e obriga o Estado a informar.
Para o propósito deste artigo, assume relevo este último inciso, assim grafado: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”
Logo, todo e qualquer cidadão pode acessar os arquivos públicos e, ressalvados os casos de proteção à intimidade, consultar documentos mantidos ou possuídos pelo poder público. Não há sequer a necessidade de justificar o interesse em conhecer a informação.
A transparência dos arquivos estatais é um imperativo para o exercício da cidadania e da soberania. Reforça os princípios do Estado democrático de direito e republicano (“todo o poder emana do povo”). Sem o conhecimento da história do País, o povo não pode exercer com liberdade, maturidade e responsabilidade o direito à auto-determinação.
A norma constitucional admite, porém, que documentos sejam mantidos sob sigilo quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. É uma exceção – pontual e razoável –, através da qual se permite que o Estado omita, em especiais situações, o conhecimento público de dados e informações, pois a sua revelação precipitada poderia ser danosa para o País. Essa hipótese ocorre, por exemplo, com aspectos da defesa militar, estratégias comerciais e de política exterior, atividades de inteligência da polícia etc.
Enfatize-se, porém, que o sigilo é medida excepcional, devendo ser formalmente justificado. O Estado tem o ônus de demonstrar que o segredo é indispensável para prevenir graves prejuízos ao interesse coletivo. Não pode transformar supostos riscos em fundamento para a omissão de documentos. Evidentemente, tampouco está contido na exceção constitucional o sigilo para preservar interesses individuais de autoridades, ou a possibilidade de esconder da população fatos do passado apenas por serem desabonadores de biografias. Por outro lado, o dano que justifica o sigilo deve ser atual e relacionado diretamente com os interesses da nação, não sendo admissível o segredo eterno.
O Congresso Nacional, em 1991, editou a Lei nº 8.159, estipulando o prazo máximo de 30 anos, prorrogável uma única vez por igual período, para manutenção da reserva de acesso a documentos, e admitindo, também, o segredo de informações por 100 anos, quando necessário à defesa da honra e da imagem de pessoas. Essa lei foi objeto de seguidas regulamentações presidenciais, destacando-se o Decreto nº 4.553, editado em 2002. Em flagrante inconstitucionalidade por estipular limite superior ao fixado na lei (decreto não pode contrariar uma lei), determinava o trancafiamento por 50 anos dos documentos considerados ultra-secretos, prazo esse prorrogável indefinidamente, conforme a vontade do primeiro escalão do Executivo.
No atual governo e legislatura foi editada a Lei nº 11.111/05, fruto da conversão de uma medida provisória. Ocorre que a Constituição brasileira, no artigo 62, proíbe expressamente que esta espécie de ato normativo seja empregada para legislar sobre cidadania, dentre outros temas relevantes (nacionalidade, direitos políticos, direito penal etc.). Com efeito, a medida provisória é um ato de urgência. Eventualmente, é editada de afogadilho pelo presidente da República, para atender a demanda imprevisível e relevante. Da mesma forma, no Congresso Nacional é apreciada em regime célere, sem o curso normal do processo legislativo e sem discussão com a sociedade. A edição de uma lei, ao contrário, é fruto de debate público e democrático nas duas casas do Congresso, sob um procedimento apto à produção da norma com maturidade e legitimidade política e jurídica. Vale dizer, as medidas provisórias não são adequadas para tratar de direitos fundamentais caros ao cidadão, pois têm deficiente legitimidade popular. Nem mesmo a sua posterior conversão em lei convalida esse vício, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal.
Regular o acesso a documentos mantidos ou possuídos pelo Poder Público é limitar o exercício da cidadania. É restrição do direito à verdade. É matéria para a qual não poderia ser empregada a medida provisória. A edição da Lei nº 11.111 violou, portanto, a Constituição.
Mas não é só. A nova lei, que se esperava viesse a ser produzida com base em valores democráticos e para triunfo da transparência, pretende institucionalizar de vez o descaso com o direito à verdade, pois permite o sigilo eterno de documentos, através de decisão de uma Comissão composta apenas por integrantes do governo.
Ademais, não enfrenta um dos principais problemas relacionados à liberação de arquivos secretos, que é a insegurança quanto à própria existência dos documentos. Informações contraditórias e muitas vezes não verossímeis sobre a destruição de importantes fontes de dados são freqüentemente difundidas, deixando os cidadãos que foram atingidos por atos do poder público, familiares, e a sociedade, impedidos até mesmo de saber o que pesquisar.
É preciso construir um modelo de acesso aos arquivos do Estado compatível com a promoção dos direitos fundamentais. Uma nova legislação deve ser editada, reflexo de uma discussão aprofundada e de um processo democrático no Congresso Nacional.
Propomos que essa lei contemple:
1) a realização de um inventário dos documentos que estão arquivados sob sigilo, apontando: (a) o assunto sobre o qual versam; (b) os motivos do sigilo e quais danos podem resultar de sua divulgação; (c) a autoridade que os classificou; (d) o prazo ou evento fixado para a liberação do seu conteúdo; (e) se o segredo é em relação a todo o documento ou apenas parcial; e (f) o órgão responsável pela sua conservação;
2) a constituição de uma comissão plural para a elaboração e a sistematização dessa relação geral de documentos sigilosos. Dotada de amplos poderes de requisição, busca e análise, e submetida a rígido dever de silêncio, deve ser integrada por representantes do Executivo, do Legislativo, do Ministério Público, da Universidade pública, do Arquivo Público e também da sociedade civil;
3) a obrigação das autoridades, quando classificarem documentos como sigilosos por prazo superior a 1 ano, formalizarem a decisão com os mesmos elementos referidos no item 1 acima;
4) a criação de um índice unificado de documentos federais sigilosos;
5) a instituição de um procedimento administrativo para impugnação da decisão que classificou o documento como sigiloso;
6) procedimentos para divulgação parcial de documentos, com a ocultação do que for apenas imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
7) limitação do prazo inicial de sigilo para 10 anos, prorrogável por no máximo 2 períodos adicionais (total de 30 anos);
8) instituição de um órgão colegiado de revisão obrigatória de todas as decisões de prorrogação de prazos de sigilo, bem como de julgamento administrativo das impugnações de classificação, composto por representantes das mesmas instituições mencionadas no item 2 supra.
Desarquivemos o Brasil.
São Paulo, 24 de junho de 2005.
Marlon Alberto Weichert é Procurador Regional da República.

extraído de: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/sa/default.asp